Mais um artigo anti-papal

Leiam o artigo de Marco Politi, vaticanista, no La Repubblica de hoje:


A presença Pio IX volta a se manifestar na Santa Romana Igreja. A imprevista exaltação do papa Mastai, descrito por Bento XVI como grande pontífice de virtudes exemplares, “indômito e corajoso” combatente contra a secularização do século XIX, não é o melhor auspício para acalmar as tensões entre a sociedade laica e o papado.

É preciso saber ler a body-language de Joseph Ratzinger. No último consistório, em novembro de 2007, Bento XVI se apresentou na basílica vaticana com a mitra de Pio IX e o pluvial de João Paulo II. Sentado no trono, não evocava a imagem de um peregrino da fé, mas o ícone de um papado imperial. Nos pesados paramentos dourados, se refletia a obstinada vontade de manter unidas a Igreja do Syllabus e a Igreja do ‘mea culpa’, o papado que reabriu o gueto de Roma e o papado que, em Jerusalém, no ano 2000, pediu perdão pelo anti-semitismo, o catolicismo do absolutismo papal e o do ‘povo de Deus’ celebrado pelo concílio Vaticano II.

Não se escolhem por acaso as vestes cerimoniais para um rito pontifical. A sacristia de São Pedro não é uma loja de vestes teatrais que escolhe por meros gostos estéticos. A mitra de Pio IX pertence ao pontífice que declarou guerra ao século XIX, que execrou a liberdade de consciência e a liberdade religiosa, que permitiu que os seus seguidores se servissem de manobras totalitárias para impor a infalibilidade papal. A imagem de Pio IX que pôs o pé sobre o pescoço de um bispo que se opunha ao dogma – isso aconteceu durante uma audiência, no momento do beijo das pantufas – pertence às páginas mais desagradáveis da história da Igreja.

A recuperação da mitra foi o prólogo do discurso ratzingeriano no 130º aniversário do papa Matsai. Ele demonstra que não se trata de algo extemporâneo. A imagem de Pio IX, na descrição feita por Ratzinger, é a de um pontífice que luta para reafirmar a verdade da fé cristã frente a uma sociedade que se seculariza. Um baluarte heróico. Ontem Pio IX, hoje Bento XVI é a equação apresentada instintivamente aos olhos dos fiéis e do mundo. O jornal L´Osservatore Romano confirma. “Hoje se vive, em boa parte, da herança de Pio IX, proclama o fiel postulador da causa de canonização – e se correm riscos que o seu magistério pretendia poupar à Igreja de então e de sempre”.

Assim se coloca no mesmo plano o que é conciliável e o que não é. A oposição frontal à modernidade de Pio IX e a abertura aos sinais dos tempos de João XXIII, a infalibilidade papal, de um lado, e a gestão colegial da Igreja juntamente com os bispos, do outro. Continuamente volta, enfim, a vontade de negar o caráter de mudança e, em certos aspectos, de ruptura do Concílio Vaticano II. Mas a operação somente pode ser feita apelando à apologética ou se refugiando na remoção. Pio IX abominava a democracia, o Vaticano II a fez sua. Pio IX considerava a liberdade religiosa como uma loucura, o Vaticano II a reconheceu, Pio IX considerava a liberdade de consciência como algo inconcebível, Karol Wojtyla fez dela uma dos pontos centrais do seu pontificado, denunciando o que houve de opressivo no interior da Igreja. Isso tudo para não falar do ecumenismo. As crônicas do Concílio de Pio IX, em 1870, descrevem os gritos de condenação, dirigidas contra o bispo alemão Stossmeyer, culpado por ter declarado que “também entre os protestantes há pessoas que amam Jesus”. E quando o mesmo bispo implora para que não se imponha um dogma como a infalibilidade simplesmente apelando para a maioria, os seguidores de Pio IX se puseram a gritar:” Anátema, anátema, é um outro Lúcifer, um segundo Lutero”.


Não se pode recuperar Pio IX e querer o diálogo com o mundo contemporâneo. Está aqui a grande, subterrânea contradição do pontificado de Bento XVI: desejar sinceramente um confronto fecundo com a razão e a ciência moderna enquanto são propostas novamente as experiências mais autoritárias e doutrinalmente fechadas da Igreja. Muitas vezes os movimentos ratzingerianos parecem que ficam bloqueados pela metade. Num espasmo de contradições. Refutar as cruzadas e sustentar que o Islã é intrinsecamente violento. Afirmar que a Igreja não faz política e querer ditar o comportamento dos católicos no Parlamento. Querer o confronto com a razão e negar sua dignidade autônoma, se não se bebe das fontes do Transcendente.

Há um trecho revelador no seu discurso que seria proferido na universidade La Sapienza, de Roma. “Várias coisas ditas pelos teólogos no decorrer da história ou também traduzidas na prática das autoridades eclesiais – admite Ratzinger – se demonstraram falsas”. Mas nunca se diz quem demonstrou a falsidade. É uma remoção eloqüente. Porque aqueles que, nos séculos passados desmontaram verdades oficiais erradas, freqüentemente foram católicos perseguidos, teólogos declarados heréticos, pensadores não crentes acusados como inimigos da Igreja.

É difícil dialogar com o mundo moderno se não se admite até o fim a relatividade do agir da instituição eclesiástica, feita de seres humanos. Aos homens e às mulheres contemporâneos, sejam católicos ou não, a ideologia de um papa-rei, tipo Pio IX, inspira somente distância.

Não preciso aqui referenciar os momentos que o "vaticanista" demonstra seu rancor contra Bento XVI, pois está claríssimo. Concentro-me apenas nessa afirmação: "Continuamente volta, enfim, a vontade de negar o caráter de mudança e, em certos aspectos, de ruptura do Concílio Vaticano II". Em contraposição à frase, eu diria: desde o final do Concílio Vaticano II existem indivíduos, como Marco Politi, que insistem em fazer da Igreja algo totalmente novo, e calcados em um otimismo ilusório, nesse caso, demonstram-se como os últimos baluartes da "verdadeira nova Igreja", aquela que, afirmam ideologicamente, desejava João XXIII. Observem como o autor gasta um parágrafo fazendo referências das contradições entre o papado de Pio IX e o Vaticano II. Mas peraí? Não me lembro de existir contradição entre primado papal e colegialidade. As duas coisas andam juntas e isso foi considerado pelo concílio. Outra: se Pio IX "abominava" a democracia era devido ao caráter laicista que se imprimia nela em diversos países da Europa, não necessariamente era contra "a" democracia. Parece até que o "vaticanista" não sabe que os Estados papais estavam correndo risco de desaparecerem na ocasião (o que de fato aconteceu) e que a posição de Pio IX era em vista da manutenção do poder temporal. De novo: peraí? Mas esse sujeito não sabe o que é hermenêutica? Não sabe que devo ler o Syllabus observando o sentido geral do texto e não suas proposições particulares, como diz o próprio teólogo... Joseph Ratzinger? E onde estão as atitudes "autoritárias" que chama atenção para o papado atual? Um papado marcado por um "espasmo de contradições": diga-me um que não foi contraditório, melhor, diga qualquer governo de qualquer nação ocidental ou oriental que não se move em contradições? Qual o problema de Bento XVI querer reafirmar, como Pio IX, a fé católica frente a um mundo que se seculariza cada vez mais? Não é a democracia o que defende, Marco Politi? Parece agora que quem se contradiz é o próprio "vaticanista"...


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