Liberdade religiosa e cristianismo


Liberdade religiosa: exigência cristã

A liberdade sempre foi um tema forte no pensamento da Igreja. Em seus primórdios, o cristianismo fora perseguido devido as suas exigências de liberdade de consciência frente à imposição das formas diversas de paganismo pelo Império Romano. O cristianismo, com seu “daí a Cesar o que é de César”, abalava as estruturas culturais e políticas romanas e abria espaço para a dita laicização da esfera pública.

A certidão de cidadania no Império incluía obrigatoriamente uma dimensão religiosa. “Ser cidadão”, e assim usufruir do direito romano, abrangia forçosamente um aspecto religioso, que compelia o indivíduo às práticas pagãs, que por sua vez, serviam como amálgama ao grande império que já demonstrava sinais de declínio. Em vistas desses sinais, e de uma política de perseguição que não produzia os resultados desejados, mas ao contrário, fazia mais pessoas se converterem ao cristianismo, Constantino no início do século IV, com o famoso Edito de Milão, declarava que os cristãos, a partir de então, poderiam professar sua fé, tendo assim igualdade de direitos com as outras religiões. Era assegurada a liberdade religiosa. Com vistas em assegurar a permanência histórica do Império, alguns imperadores passam a ver no cristianismo a sua principal e última cartada. Começam a cercear sempre mais os cultos pagãos, chegando mesmo à sua proibição pública por Teodósio em 391. A situação se invertia. As intervenções imperiais na Igreja vão sendo sempre maiores. Nota-se, como exemplo, que o primeiro concílio ecumênico da história do cristianismo foi convocado pelo próprio Constantino em 325 em vista da heresia ariana. O chefe do Estado assumia as funções de regulação doutrinal, o que chamamos de cesaropapismo. Era o início de relações cada vez mais confusas e sobrepostas entre o poder temporal e o poder espiritual.

A dinâmica histórica ocidental, tanto na Europa quanto na América Latina colonial, de vários séculos seria marcada por essas relações, chegando mesmo, em alguns momentos, a Igreja ser simplesmente um braço espiritual de um poder secular, tendo seus bispos nomeados pelo poder político e até mesmo escolhendo este ou aquele como papa. Pertencer à comunidade de fé cristã era garantir seu reconhecimento também como pertencente da comunidade política. Era ter sua garantia existencial, na qual transcendia os espaços terrenos em vista do Reino futuro. Dessa forma, questionar as verdades da fé era grave delito que poderia levar a desestabilização da própria ordem política, calcada sob a égide da fé.

Contudo, as circunstâncias que levam a essa conjuntura passam a sofrer seus maiores abalos no século XVIII e XIX. A Igreja, questionada em seus dogmas a partir da ciência iluminista e nas suas relações com o poder temporal pelos valores revolucionários franceses de 1789 que buscavam o constitucionalismo liberal, passa a ser o alvo principal de ataque. Muitos a vêem como a principal representante que sobrevive daquele mundo demarcado em estamentos rígidos e cheios de privilégios chamado pelos historiadores de Antigo Regime.

Abalada pelas exigências de liberdade e questionada em sua autoridade máxima, o papado, a Igreja do século XIX opta por uma estratégia de recusa e enclausuramento. A defesa, pelo pensamento político liberal, de uma laicidade, isto é, separação do Estado da religião, confundia-se com um laicismo agressivo, que negava qualquer voz provinda dos círculos religiosos, especialmente na Europa Ocidental. Frente aos ataques que partiam de todos os lados, a Igreja recua ainda mais e, como “fortaleza sitiada”, deseja continuar desenvolvendo sua missão na terra sem as influências do mundo moderno. Essa recusa pode ser notada claramente no famoso documento papal Syllabus Errorum Modernorum (Silabo dos Erros Modernos). Este documento refletia o esquivar-se da Igreja em aceitar que o Estado, baseado agora no liberalismo político, não mais a subsidiasse e, por fim, declarasse a laicidade estatal.

Porém, migrando lentamente durante a primeira metade do século XX de um pensamento que desejava um reforço dos laços entre ela e o Estado a um pensamento que via na separação das esferas e na liberdade de consciência, baseado em garantias constitucionais, um ganho para o homem e seus direitos e mesmo para sua atuação evangélica, a Igreja chega a assumir sua defesa juridicamente com o Concílio Vaticano II. Com o maior concílio da história do cristianismo, e sua famosa Declaração Dignitatis Humanae, a Igreja se compreendeu como um baluarte da liberdade de consciência, da liberdade religiosa, e assim sendo, dos direitos humanos.

Nunca é demais lembrar essa fecunda declaração em um momento no qual alguns grupos desejam limitar a religião ao espaço privado, sem permiti-la trazer sua contribuição calcada em séculos de história: “o cuidado pelo direito à liberdade religiosa pertence tanto aos cidadãos quanto aos grupos sociais, tanto aos poderes civis quanto à Igreja e às demais comunidades religiosas, cada qual ao seu modo [...]” (DH, 1549).

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