Vaticano II: “esse obscuro objeto de desejo”


Do jornal O Lutador, 21 de maio 2009


Peço licença aos leitores para uma divagação teórica sobre, mais uma vez, o Concílio Vaticano II, uma de minhas obsessões profissionais. Nesses quase 50 anos de recepção as discussões crescem, tornam-se quase lutas fratricidas, e exigem um olhar mais cuidadoso sobre as questões. O filósofo e medievalista alemão Kurt Flasch publicou um texto no jornal francês Le Monde afirmando que “o Vaticano II trouxe algo novo no que se refere à liberdade religiosa e à exegese bíblica, mas sem nada tirar do primado do bispo de Roma, nem do primado da jurisdição do papa. Para o Colégio episcopal, o concílio realizou viradas de pouca importância, teológico-cosméticas em suma, sem verdadeiros efeitos sobre o direito canônico. Uma enorme propaganda unida a uma colocação em cena espetacular, fizeram aparecer o Vaticano II mais revolucionário de quanto não tenha sido na realidade, e a central romana luta há décadas contra esta percepção, que é antes uma autopersuasão." Para Flasch ocorre, assim sendo, durante todos esses anos de recepção conciliar, uma “supervalorização” do concílio.
A tese defendida pelo alemão parece ter ressonâncias do pensamento do célebre historiador francês Emile Poulat, em seu Une Église ébranlée: changement, conflit et continuité de Pie XII á Jean-Paul II (Casterman), de 1980, e que trazia sua lúcida tese sobre os acontecimentos. No terceiro ponto do capítulo XIV, L'année des trois papes (1978), Poulat fala em "fim de uma tradição, persistência de um modelo”. Contrariamente do que crêem alguns tantos, o historiador diz que o Vaticano II não colocou em causa nem modificou substancialmente aquele modelo construído pelo Concílio de Trento e o Concílio Vaticano I no século XIX. Ele antes procedeu a reequilíbrios, confirmando aquisições e podando alguns galhos mortos. Discutindo historicamente, como o faz Poulat, nota-se que as "aquisições" e "podas" que nos diz referem-se a toda história anterior ao evento conciliar que, por isso mesmo, possibilitou a sua realização. Segundo o historiador francês, o modelo, que ainda persiste mesmo com o acontecimento do concílio que visou um aggiornamento (atualização) da Igreja, substancia-se em três pilares: 1) negação de uma autonomia do homem que prescinda de Deus; 2) incentivo à modernização da atuação dos católicos no meio social, contando que não coloque em questão a busca da “cidade cristã”; 3) negação e condenação do modernismo como assimilação sub-reptícia das autonomias políticas, sociais e culturais da modernidade. Para Poulat, esse modelo ainda vigora na Igreja romana e não sofreu abalos mais sérios, mesmo frente aqueles que os desejavam e o desejam.
Podemos deduzir que a “supervalorização” decorre de um mito, aquele no qual, a partir de uma leitura fictícia e ilusória dos eventos, carregados não raramente de pendões ideológicos à esquerda e à direita, "desejava" que fosse “dessa” ou “daquela maneira” os seus resultados. Esse "obscuro objeto de desejo", para lembrar o cineasta Buñuel, mistura as dimensões e já não se sabe mais o que é o evento, o que é a história do evento, o que o levou, o que veio dele e assim por diante. Dessa forma, falar do concílio é exercício de julgamento e de desejo. E aí parece que as duas ações têm uma relação promíscua. Tanto o desejar quanto o julgar mesclam-se com a idéia do "o que foi". Esse “o que foi” é inacessível pela sua natureza temporal. O que temos é a história efeitual, como nos falaria o filósofo Hans-Georg Gadamer em seu Verdade e Método. Analisando historicamente a partir do nosso locus, a questão que emerge são os efeitos como ponto no qual o olhar hermenêutico pode se ater. Nossa leitura do evento condiciona-se sim aos próprios efeitos que emanam como ondas por estes 50 anos de recepção. Sofremos os efeitos dos olhares, das compreensões, das interpretações, dos preconceitos que se acumularam por todos esses anos. E é também a partir dessa "massa efeitual" que se constituem mais elementos para compô-la e recompô-la. A “supervalorização” é um de seus efeitos.

0 comentários: