"Nada de novo embaixo do sol"

Leio no O Lutador, número 3684 (11 a 20 de fevereiro de 2010), uma frase de Jon Sobrino – em destaque na matéria principal do jornal –, que não é de sua autoria, mas é repetida aos borbotões por todos os cantos, entre teólogos, historiadores da Igreja, leigos engajados, entre outros. A frase diz o seguinte: “Na situação em que se encontra a Igreja, é importante voltar ao Vaticano II”. Não estou a questionar o trabalho teológico de Sobrino – pois também não teria o devido knowhow para fazê-lo –, já que isto foi feito por inúmeros estudiosos, inclusive pela Congregação para a Doutrina da Fé, mas sim a frase que proferiu.

De fato, geralmente, junto dessa frase vem acoplado a famosa alocução “espírito do concílio”, vago jargão eclesial repetido por certos grupos católicos, que não sabem muito bem o que isto significa, ou sabem muito bem e o utilizam a fim de corroborar certos posicionamentos dissonantes com a cúpula hierárquica. Podemos dizer, junto com outros estudiosos do tema, que são aqueles “desiludidos”, ou para usar uma expressão mais contundente, “frustrados” do concílio, que engrossaram as fileiras da maioria conciliar – como bispos, teólogos, ou mesmo propagandistas das idéias do eixo centro-europeu – e que, no pós-concílio, visaram alargar ainda mais a interpretação dos documentos conciliares, em nome daquele “espírito”, sempre mais nebuloso, fugidio e exigente. Sim, exigente. Se alguns afirmam que o pontificado de João Paulo II, e de seu sucessor, Bento XVI, foi marcado pelo signo da “restauração” – o que o próprio Ratzinger confirma de certo modo no livro-entrevista A fé em crise? (Editora EPU), ao dizer sobre um necessário “reequilíbrio” pós-conciliar – esta só pôde ser colocada em andamento e levada a cabo devido a, podemos dizer, agressividade interpretativa de alguns grupos que, infelizes com algumas pisadas no freio na locomotiva conciliar por Paulo VI, principalmente no final da terceira sessão (1964), visaram ler os documentos do concílio de forma maximalista, tentando com um tour de force fazê-lo falar o que não falava; remetendo-se assim, apenas ao dito “espírito”, sem referenciar a letra, que num trabalho hermenêutico vem junto do “espírito”. (Walter Kasper, no seu livro Teologia e Chiesa explica-nos bem esta questão). Se fugirmos de uma norma interpretativa, somos levados a afirmar erroneamente que não existe tal “espírito” e sim “espíritos do concílio”, concernentes aos vários grupos que desejam se apossar de seus significados, ou mesmo criá-los.

Vejamos o caso da liturgia. Se estudarmos a Sacrosantum concilium, não achamos nela nem um sinal de que a maioria dos padres conciliares desejassem, nos inúmeros debates sobre o tema na primeira sessão conciliar (1962), suprir de uma só vez das missas o latim. Como o vaticanista Andrea Tornielli demonstrou em um de seus estudos – este online – tal questão não constava no texto do documento. Como afirma, "a substituição do latim pelo vernáculo na liturgia da Igreja católica foi considerada por muitos uma medida infeliz e saudada por outros como um ‘aggiornamento’ necessário para favorecer a participação do povo. Todavia, não foi uma decisão do Concílio Ecumênico Vaticano II. O latim ainda é a língua oficial da Igreja, ou pelo menos foi durante dezoito séculos. Cinco anos depois do Concílio, não havia mais sinal dele nos livros litúrgicos católicos. A eliminação total da língua dos antigos romanos aconteceu quase à surdina e em alguns casos contra a vontade do Papa Paulo VI, o qual estabeleceu que ela deveria permanecer ao lado do vernáculo no missal."

Pergunto: “voltar” ao Vaticano II significa implementar suas determinações ou “criar” o que desejo que ele diga, respondendo meu anseio, até certo ponto, legítimo de uma renovada Igreja? – como já o chamei aqui de obscuro objeto de desejo. Tal jargão – “voltar ao concílio” – é utilizado a torto e a direito, correspondendo o seu significado à boca que o profere. Esse tipo de questão não é nova e já se encontra claramente nos escritos de Paulo VI. Em alguns deles percebemos os receios de Montini em relação a essa busca de renovar a Igreja sem um olhar para a sua história e tradição. Numa de suas alocuções, de outubro de 1966, afirmou, corroborando o que afirmei acima: “é também verdade que alguns atribuem ao concílio as suas próprias opiniões e identificam muito facilmente as deliberações conciliares com os seus próprios desejos, e procuram assim emancipar-se da norma estabelecida”. Vejam que pouco depois da conclusão do Concílio, menos de um ano, Paulo VI já lhe dava com esse tipo de abordagem dos textos conciliares, geralmente, remetendo-se ao vago “espírito” como o legitimador dos seus desejos. Assim, repito as sábias palavras do Eclesiastes: “nada há de novo embaixo do sol” (Ecle 1:9).