Corriqueiramente, deparo-me em salas de aula e em alguns debates com perguntas e reflexões do tipo: “Então, Bento XVI é um grande conservador, não?”; “O papa está retrocedendo em algumas posições da Igreja?”; “Bento XVI é um reacionário?”; “O pontificado de Ratzinger, junto com o de Wojtyla, foi um passo atrás da Igreja”. De fato, estes posicionamentos são os mais comuns, não só entre alunos e colegas na universidade, mas podem ser tomados como sintomas do modo como a opinião pública se constitui: repete-se aqui e ali um parecer sobre um fato específico, e aquele parecer, no fim das contas, assume um caráter de verdade. Goebbels, o ideólogo do nacional-socialismo já afirmava: “uma mentira repetida muitas vezes se torna verdade”.
Não que esta posição seja uma mentira stricto sensu. É um olhar. Uma interpretação dos fatos. Contudo, de interpretação passa a ser tomada como verdade, realidade pura e simples, e quem geralmente a profere, o faz sem conhecimento de causa, apenas repetindo e assumindo uma posição que nem sabe aonde está fundamentada, muito menos seus impactos. Já disseram por aí que a democracia sofre desse mal. Sua natureza tende para a retórica e para a superficialidade.
Podemos tomar como exemplo um momento que me aconteceu em um curso que ministrei sobre religiões africanas e afro-brasileiras. Como é sabido, o Brasil constituiu-se como povo tendo um forte influxo dos povos cativos trazidos da África durante, mais ou menos, três séculos. Nota-se que traços culturais destes povos marcaram indelevelmente nossa cultura, da música à nossa maneira de cozinhar. Contudo, observa-se, com relativo acerto, que viramos o rosto para este fato e que existe uma grande necessidade de “revalorizar”, de “resgatar” – para usar o jargão de certos grupos – a cultura afro-brasileira e sua importância para o País. Além disso, reclama-se da ignorância que permeia os discursos de certas pessoas sobre a realidade africana, no caso, a das religiões brasileiras que possuem raízes africanas, como por exemplo, ver toda manifestação religiosa afro-brasileira como “magia negra”. De fato, certa valorização destas culturas, a fim de que possamos entender melhor “o que faz o Brasil, Brasil”, como diria Da Matta, é muito importante. Nota-se, inclusive, que certos grupos religiosos ligados ao candomblé nagô (yorubá) visam resguardar os traços originais de sua religião e que já se apresentavam na África, como a tradição específica no toque nos tambores e também o uso da língua africana em seus rituais. Bem, é aí que começam a aparecer algumas contradições. Os mesmos grupos – e aqui não me refiro exclusivamente a grupos ligados às religiões afro-brasileiras, mais àqueles, como certas ONGs, que se dedicam a manter vivas culturas autóctones, como por exemplo, as indígenas brasileiras – que geralmente clamam e levantam bandeiras de defesa de suas raízes culturais contra um mundo capitalista hostil, que transforma tudo em mercadoria, são, geralmente, aqueles que, tratando-se de Roma – do papado, entenda-se bem –, acusam certas posições de Bento XVI como “retrógradas”, “reacionárias”, “conservadoras” ou coisa que o valha. “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”, já diria profeticamente George Orwell, no contumaz A revolução do bichos. Ora, se a defesa das “raízes culturais” deste ou daquele grupo é tão publicamente proferida e importante na manutenção de uma pretensa “identidade”, por que as atitudes de Bento XVI, como por exemplo – e pensando como um dos principais atos deste pontificado – a liberação da dita “missa tridentina” sem a necessária autorização do bispo, é tachada rapidamente por alguns como simples “retrocesso”? Por que a utilização de epítetos nada agradáveis aos ouvidos modernos, como “reacionário” ou “conservador” – mesmo que não tenham a mínima noção do que significam -, já que ele (o papa) também parte de uma mesma prerrogativa, isto é, zelar para que um patrimônio de séculos não se perda frente à desconstrução pós-moderna? Não posso entender tal atitude de outra forma senão como hipocrisia. Ou talvez possa. Hans urs von Balthasar, teólogo de renome do século XX, falava em um de seus livros, publicado em 1974, de “complexo antirromano”, fenômeno de longa data. Grosso modo, Balthasar afirma que tal complexo vai se caracterizar pela posição de negação de tudo o que vem de Roma, e isso quer dizer, do papa.
Não podemos vislumbrar ainda, a longo prazo, o que alguns posicionamentos de Bento XVI vão trazer de benefícios para a estrutura eclesial como um todo. De fato, como já dito aqui outras vezes, o que me parece é que seu intuito é o de reequilibrar as forças atuantes em seu interior. Do Vaticano II, aos excessos – que ninguém nessa altura dos acontecimentos pode negar – ocorridos em vários campos, inclusive e especialmente o da liturgia, advindos de uma leitura que marca as “novidades” do evento conciliar, aquela que fala em nome do “espírito do concílio”, o que Bento XVI parece fazer é tentar resguardar o que a história do cristianismo nos legou até hoje, ou seja, cuidar de suas “raízes culturais”, não permitindo que sejam sorvidas pelos ventos de um desejo de aggiornamento a qualquer custo (Jacques Maritain dizia na época que com o concílio a Igreja tinha se ajoelhado para o mundo) que, por vezes, demonstra-se, para muitos, como infecundo e, pior, como incompreensível e forçado esquecimento.