“Complexo antirromano”, pura hipocrisia ou as duas coisas?

Corriqueiramente, deparo-me em salas de aula e em alguns debates com perguntas e reflexões do tipo: “Então, Bento XVI é um grande conservador, não?”; “O papa está retrocedendo em algumas posições da Igreja?”; “Bento XVI é um reacionário?”; “O pontificado de Ratzinger, junto com o de Wojtyla, foi um passo atrás da Igreja”. De fato, estes posicionamentos são os mais comuns, não só entre alunos e colegas na universidade, mas podem ser tomados como sintomas do modo como a opinião pública se constitui: repete-se aqui e ali um parecer sobre um fato específico, e aquele parecer, no fim das contas, assume um caráter de verdade. Goebbels, o ideólogo do nacional-socialismo já afirmava: “uma mentira repetida muitas vezes se torna verdade”.

Não que esta posição seja uma mentira stricto sensu. É um olhar. Uma interpretação dos fatos. Contudo, de interpretação passa a ser tomada como verdade, realidade pura e simples, e quem geralmente a profere, o faz sem conhecimento de causa, apenas repetindo e assumindo uma posição que nem sabe aonde está fundamentada, muito menos seus impactos. Já disseram por aí que a democracia sofre desse mal. Sua natureza tende para a retórica e para a superficialidade.

Podemos tomar como exemplo um momento que me aconteceu em um curso que ministrei sobre religiões africanas e afro-brasileiras. Como é sabido, o Brasil constituiu-se como povo tendo um forte influxo dos povos cativos trazidos da África durante, mais ou menos, três séculos. Nota-se que traços culturais destes povos marcaram indelevelmente nossa cultura, da música à nossa maneira de cozinhar. Contudo, observa-se, com relativo acerto, que viramos o rosto para este fato e que existe uma grande necessidade de “revalorizar”, de “resgatar” – para usar o jargão de certos grupos – a cultura afro-brasileira e sua importância para o País. Além disso, reclama-se da ignorância que permeia os discursos de certas pessoas sobre a realidade africana, no caso, a das religiões brasileiras que possuem raízes africanas, como por exemplo, ver toda manifestação religiosa afro-brasileira como “magia negra”. De fato, certa valorização destas culturas, a fim de que possamos entender melhor “o que faz o Brasil, Brasil”, como diria Da Matta, é muito importante. Nota-se, inclusive, que certos grupos religiosos ligados ao candomblé nagô (yorubá) visam resguardar os traços originais de sua religião e que já se apresentavam na África, como a tradição específica no toque nos tambores e também o uso da língua africana em seus rituais. Bem, é aí que começam a aparecer algumas contradições. Os mesmos grupos – e aqui não me refiro exclusivamente a grupos ligados às religiões afro-brasileiras, mais àqueles, como certas ONGs, que se dedicam a manter vivas culturas autóctones, como por exemplo, as indígenas brasileiras – que geralmente clamam e levantam bandeiras de defesa de suas raízes culturais contra um mundo capitalista hostil, que transforma tudo em mercadoria, são, geralmente, aqueles que, tratando-se de Roma – do papado, entenda-se bem –, acusam certas posições de Bento XVI como “retrógradas”, “reacionárias”, “conservadoras” ou coisa que o valha. “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”, já diria profeticamente George Orwell, no contumaz A revolução do bichos. Ora, se a defesa das “raízes culturais” deste ou daquele grupo é tão publicamente proferida e importante na manutenção de uma pretensa “identidade”, por que as atitudes de Bento XVI, como por exemplo – e pensando como um dos principais atos deste pontificado – a liberação da dita “missa tridentina” sem a necessária autorização do bispo, é tachada rapidamente por alguns como simples “retrocesso”? Por que a utilização de epítetos nada agradáveis aos ouvidos modernos, como “reacionário” ou “conservador” – mesmo que não tenham a mínima noção do que significam -, já que ele (o papa) também parte de uma mesma prerrogativa, isto é, zelar para que um patrimônio de séculos não se perda frente à desconstrução pós-moderna? Não posso entender tal atitude de outra forma senão como hipocrisia. Ou talvez possa. Hans urs von Balthasar, teólogo de renome do século XX, falava em um de seus livros, publicado em 1974, de “complexo antirromano”, fenômeno de longa data. Grosso modo, Balthasar afirma que tal complexo vai se caracterizar pela posição de negação de tudo o que vem de Roma, e isso quer dizer, do papa.

Não podemos vislumbrar ainda, a longo prazo, o que alguns posicionamentos de Bento XVI vão trazer de benefícios para a estrutura eclesial como um todo. De fato, como já dito aqui outras vezes, o que me parece é que seu intuito é o de reequilibrar as forças atuantes em seu interior. Do Vaticano II, aos excessos – que ninguém nessa altura dos acontecimentos pode negar – ocorridos em vários campos, inclusive e especialmente o da liturgia, advindos de uma leitura que marca as “novidades” do evento conciliar, aquela que fala em nome do “espírito do concílio”, o que Bento XVI parece fazer é tentar resguardar o que a história do cristianismo nos legou até hoje, ou seja, cuidar de suas “raízes culturais”, não permitindo que sejam sorvidas pelos ventos de um desejo de aggiornamento a qualquer custo (Jacques Maritain dizia na época que com o concílio a Igreja tinha se ajoelhado para o mundo) que, por vezes, demonstra-se, para muitos, como infecundo e, pior, como incompreensível e forçado esquecimento.

Missa tridentina em Belo Horizonte

Há tempos não escrevo por aqui. A chegada do Twitter tirou minha atenção do blog. Acho que é uma tendência mundial. Contudo, saiu semana passada uma reportagem em um jornal da TV Minas sobre a “missa tridentina” na capital mineira que gostaria de compartilhar. Segue abaixo.

Sobre a psicologia das massas

O século XX foi marcado, especialmente, pela carnificina sem precedentes. Por todos os lados do planeta vimos crescer os fascismos, os comunismos, ditaduras e sistemas totalitários que, marcados por teorias de fundo teleológico, perverteram o senso de realidade e nos jogaram em experiências brutalizantes, sempre com o intuito de chegarmos ao pretenso “final feliz”, ininterruptamente mais longe, a cada novo expurgo. A falsificação do bem, como forma de trazer mais correligionários para a causa auto-redentora, desumana e inalcançável, foi uma constante na propaganda ideológica maciça, que não deixava uma brecha de ar puro, naquele ambiente asfixiante, e que jogava a cada dia centenas de pessoas nos campos de concentração, quer nazistas, quer comunistas, os famigerados gulags, ou, para usar um eufemismo, “campos de trabalho corretivo”.

O estudioso francês Alain Besançon, em seu livro A infelicidade do século – sobre o comunismo, o nazismo e a unidade da Shoah (Editora Bertrand Brasil), tratou pontualmente do tema ao afirmar que estes sistemas totalitários são perpassados pela destruição física, pela destruição do político e pela destruição moral. Para ele, tais sistemas, que destroem as almas e as inteligências, falsificaram a noção de bem ao dar dignidade às idéias que desbancavam, por fim, em escravidão e morte. Enquanto para os nazistas o bem consistia em restaurar uma ordem natural corrompida pela história, especialmente pela modernidade, e que tinha como centro o “homem ariano alemão”, marcado por leitura específica e distorcida do super-homem de nietzschiano, para o comunismo o bem era levar a todos os homens, e não só o alemão, àquela categoria de seres humanos. Seria a democratização do super-homem. A idéia da graça de Deus que colabora com o homem decaído pela sua ignorância e egoísmo na sua peregrinação terrena é trocada pela idéia de que o próprio homem faz e conduz o seu caminho rumo ao paraíso terreno, povoado pelos “homens novos”, tão ridicularizado por um dos maiores romancistas de todos os tempos, Fiódor Dostoievski. Arremata Besançon: “o que é chamado de humano e de humanidade é, de fato, o sobre-humano e o sobre-humanitário que promete a ideologia”.

Mas quais os motivos que levou, ou levam, as massas a se deixarem guiar por teorias ou por “salvadores da pátria” que surgem de tempos em tempos aqui e ali? O que os impele a deixar suas próprias experiências e noções mais primordiais – como individualidade – em função de um chefe, um Führer ou Dux, que me dê a mão para nos levar a uma falsa libertação? Freud, em um de seus mais importantes estudos, Psicologia de grupo e a análise do ego, faz alguns apontamentos interessantes que podem nos ajudar a compreender tais motivos. Para ele, partindo dos estudos de Le Bon, Psychologie des foules (1855), afirma peremptoriamente que “os grupos nunca ansiaram pela verdade. Exigem ilusões, e não podem passar sem elas. Constantemente dão ao que é irreal precedência sobre o real; são quase tão intensamente influenciados pelo que é falso quanto pelo que é verdadeiro”. Le Bon aponta três fatores que levam as massas a tal obediência cega: 1) o indivíduo que faz parte do grupo adquire sentimento de “poder invencível”, que lhe permite deixar vir à tona todos os seus mais recônditos instintos que, estando sozinho, seria mantido sob coerção. Nota-se, no caso, o desaparecimento da consciência e da noção de responsabilidade; 2) o mimetismo ou contágio. Num movimento grupal, todo ato é “contagioso em tal grau, que o indivíduo prontamente sacrifica seu interesse pessoal ao interesse coletivo”; 3) Sugestionabilidade. Freud afirma que “quando indivíduos se reúnem num grupo, todas as suas inibições individuais caem e todos os instintos cruéis, brutais e destrutivos, que neles jaziam adormecidos, como relíquias de uma época primitiva, são despertados para encontrar gratificação livre (...) Sob a influência da sugestão, os grupos também são capazes de elevadas realizações sob forma de abnegação, desprendimento e devoção a um ideal”. Assim, as massas não passam de um rebanho obediente, sempre a procura do senhor que as levará pelo caminho do insondável. Sempre carismático e carregado de prestígio, tal senhor paralisa as faculdades críticas daqueles elementos do grupo, enchendo-os de admiração e respeito, dando a eles a sensação de um poder invencível, que não teriam individualmente.

Albúm com fotos do padres do Concílio Vaticano I

Pelo Twitter, chegou-me este álbum de fotos dos padres que participaram do Concílio Vaticano I (1869-1870).

"Nada de novo embaixo do sol"

Leio no O Lutador, número 3684 (11 a 20 de fevereiro de 2010), uma frase de Jon Sobrino – em destaque na matéria principal do jornal –, que não é de sua autoria, mas é repetida aos borbotões por todos os cantos, entre teólogos, historiadores da Igreja, leigos engajados, entre outros. A frase diz o seguinte: “Na situação em que se encontra a Igreja, é importante voltar ao Vaticano II”. Não estou a questionar o trabalho teológico de Sobrino – pois também não teria o devido knowhow para fazê-lo –, já que isto foi feito por inúmeros estudiosos, inclusive pela Congregação para a Doutrina da Fé, mas sim a frase que proferiu.

De fato, geralmente, junto dessa frase vem acoplado a famosa alocução “espírito do concílio”, vago jargão eclesial repetido por certos grupos católicos, que não sabem muito bem o que isto significa, ou sabem muito bem e o utilizam a fim de corroborar certos posicionamentos dissonantes com a cúpula hierárquica. Podemos dizer, junto com outros estudiosos do tema, que são aqueles “desiludidos”, ou para usar uma expressão mais contundente, “frustrados” do concílio, que engrossaram as fileiras da maioria conciliar – como bispos, teólogos, ou mesmo propagandistas das idéias do eixo centro-europeu – e que, no pós-concílio, visaram alargar ainda mais a interpretação dos documentos conciliares, em nome daquele “espírito”, sempre mais nebuloso, fugidio e exigente. Sim, exigente. Se alguns afirmam que o pontificado de João Paulo II, e de seu sucessor, Bento XVI, foi marcado pelo signo da “restauração” – o que o próprio Ratzinger confirma de certo modo no livro-entrevista A fé em crise? (Editora EPU), ao dizer sobre um necessário “reequilíbrio” pós-conciliar – esta só pôde ser colocada em andamento e levada a cabo devido a, podemos dizer, agressividade interpretativa de alguns grupos que, infelizes com algumas pisadas no freio na locomotiva conciliar por Paulo VI, principalmente no final da terceira sessão (1964), visaram ler os documentos do concílio de forma maximalista, tentando com um tour de force fazê-lo falar o que não falava; remetendo-se assim, apenas ao dito “espírito”, sem referenciar a letra, que num trabalho hermenêutico vem junto do “espírito”. (Walter Kasper, no seu livro Teologia e Chiesa explica-nos bem esta questão). Se fugirmos de uma norma interpretativa, somos levados a afirmar erroneamente que não existe tal “espírito” e sim “espíritos do concílio”, concernentes aos vários grupos que desejam se apossar de seus significados, ou mesmo criá-los.

Vejamos o caso da liturgia. Se estudarmos a Sacrosantum concilium, não achamos nela nem um sinal de que a maioria dos padres conciliares desejassem, nos inúmeros debates sobre o tema na primeira sessão conciliar (1962), suprir de uma só vez das missas o latim. Como o vaticanista Andrea Tornielli demonstrou em um de seus estudos – este online – tal questão não constava no texto do documento. Como afirma, "a substituição do latim pelo vernáculo na liturgia da Igreja católica foi considerada por muitos uma medida infeliz e saudada por outros como um ‘aggiornamento’ necessário para favorecer a participação do povo. Todavia, não foi uma decisão do Concílio Ecumênico Vaticano II. O latim ainda é a língua oficial da Igreja, ou pelo menos foi durante dezoito séculos. Cinco anos depois do Concílio, não havia mais sinal dele nos livros litúrgicos católicos. A eliminação total da língua dos antigos romanos aconteceu quase à surdina e em alguns casos contra a vontade do Papa Paulo VI, o qual estabeleceu que ela deveria permanecer ao lado do vernáculo no missal."

Pergunto: “voltar” ao Vaticano II significa implementar suas determinações ou “criar” o que desejo que ele diga, respondendo meu anseio, até certo ponto, legítimo de uma renovada Igreja? – como já o chamei aqui de obscuro objeto de desejo. Tal jargão – “voltar ao concílio” – é utilizado a torto e a direito, correspondendo o seu significado à boca que o profere. Esse tipo de questão não é nova e já se encontra claramente nos escritos de Paulo VI. Em alguns deles percebemos os receios de Montini em relação a essa busca de renovar a Igreja sem um olhar para a sua história e tradição. Numa de suas alocuções, de outubro de 1966, afirmou, corroborando o que afirmei acima: “é também verdade que alguns atribuem ao concílio as suas próprias opiniões e identificam muito facilmente as deliberações conciliares com os seus próprios desejos, e procuram assim emancipar-se da norma estabelecida”. Vejam que pouco depois da conclusão do Concílio, menos de um ano, Paulo VI já lhe dava com esse tipo de abordagem dos textos conciliares, geralmente, remetendo-se ao vago “espírito” como o legitimador dos seus desejos. Assim, repito as sábias palavras do Eclesiastes: “nada há de novo embaixo do sol” (Ecle 1:9).

Da pedofilia e de homens

Há muito, dizem os estudiosos, a Igreja não passa por uma crise tão séria como a que vem enfrentando em relação ao caso dos “padres pedófilos” – especialmente depois da matéria do The New York Times, que quis ligar Ratzinger pessoalmente ao problema. De fato, nada mais sério e triste para os fiéis verem vir à tona estes casos horrendos em inúmeros países. Realmente, não se pode virar o rosto para questão tão grave e que assola a Igreja por décadas. Medidas enérgicas devem sim ser colocadas em andamento dentro da instituição a fim de conter os casos, puni-los exemplarmente e evitar que novamente se repitam. Nada mais sagrado do que a vida, e, especialmente dos pequeninos, indefesos que são. Acontece que é claro o desejo de alguns setores de verem o próprio papa envolvido com os escândalos, com alguns pedindo até mesmo a suarenúncia. Que é necessário medidas enérgicas contra estes que atentaram contra a vida é mais que claro. Nada de meias palavras. Contudo, claro também é a movimentação destes setores contra Bento XVI. Ratzinger, quando assumiu o trono papal, já deveria prever que sua tarefa não seria nada fácil e que sofreria ataques múltiplos de todos os lados, não só do exterior mas também, e especialmente, de setores católicos que não engolem a sua política de “reequilíbrio” das forças que, no pós-Vaticano II, penderam para uma noção de Igreja “a la Di Fiore”, que se transigiria facilmente com os valores modernos e que chegaria de vez aos “novos tempos”. Não sou do tipo que acredita em complôs e coisas parecidas (deveria acreditar?) - o que a alta hierarquia parece crer e levanta sua voz legitimamente - , mas acredito em lobby, e que devem haver grupos que se interessam por um enfraquecimento moral da Igreja católica no mundo. É também mais que claro que o problema da pedofilia na Igreja seria ligado por alguns – especialmente uma mídia sensacionalista – estritamente à questão do celibato, “como se os abusos não acontecessem também na família”, como afirma um curial, Walter Kasper. As massas adoram essas coisas. Aquelas mesmas massas que saíram repetindo por todos os lados as “descobertas” de Dan Brown. A questão da pedofilia na Igreja torna-se, claramente, em ataque ao celibato. Tal instituição milenar já foi atacada inúmeras vezes durante a história da Igreja, e agora passa por mais um deles. Prefiro acreditar que uma coisa não tem uma relação direta com a outra. Inclusive porque tal fato não ocorre só na Igreja romana, mas encontra-se por todos os lados, inclusive em outras igrejas, como as protestantes dos Estados Unidos, que reportam 260 casos de pedofilia por ano. Se dizem por aí que existe um certo movimento dentro do próprio Vaticano para repensar o celibato, tal movimento não se dá exclusivamente devido aos escândalos. Pode ser, equivocadamente, encorajado por ele, mas não é uma resposta a ele. Algunsdizem que isto tudo que está acontecendo é fruto da ação do diabo, que está dentro da própria Igreja, e “bem pertinho” do papa. Na verdade, o “coisa ruim” está bem perto da onde estão os homens, ou seja, aqui, bem pertinho, não só do papa, mas de todos nós.

Lefebvriano radical coloca fogo nos documentos do Vaticano II

Dom Floriano Abrahamowicz - padre expulso da Fraternidade São Pio X - suscita outra polêmica ao colocar fogo no livro que traz os documentos do Concílio Vaticano II depois de uma missa. Entre radicalidades e busca de consenso com Roma, as divisões na Fraternidade, parece, que se aprofundarão ainda mais. Veja o video aqui.

O Vaticano II e os herdeiros de Joachim di Fiore

Mais uma vez Bento XVI deixa claro a que veio: levar a cabo, não exatamente uma "restauração" do "espírito tridentino", mas um reequilíbrio de tendências, no mais das vezes, contrapostas no interior da Igreja. Em sua audiência geral da última quarta (video aqui), Bento XVI afirmou "que após o Concílio Vaticano II, alguns estavam convencidos de que tudo seria novo, de que haveria outra Igreja, de que a Igreja pré-conciliar tinha acabado e de que teríamos totalmente ‘outra’." Citando Joachim di Fiore, Ratzinger afirmou que em alguns setores da Igreja se vive uma espécie de "espiritualismo utópico", que se opõe claramente à hierarquia da Igreja, reeditando, sem sombras de dúvida, o simbolismo construído por Fiore no século XIII, e que levou ao surgimento do dito "franciscanismo espiritual". Desde o próprio concílio, nos seus momentos finais, já se nota aqueles que vêem uma "nova fase" da história da Igreja, como se fosse a última, o "fim da história", bem ao estilo de Fukuyama. De fato, a de se concordar que transformações ocorrem, mudanças de percepção. Mas o próprio concílio deve ser entendido como um momento de reequilíbrio, como nos disse uma vez o historiador da Igreja Émile Poulat. Um momento de inflexão, não o fim da história.

Livro reflete trajetória do Cardeal Kasper

Publicado no Jornal O Lutador

Walter Kasper é atualmente um dos mais importantes cardeais da Igreja católica, presidindo o importante Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Contemporâneo dos também alemães Joseph Ratzinger e Karl Lehmann, Walter Kasper realizou seus estudos em filosofia na cidade de Tubinga e Mônaco, concluindo-o em 1956. Em 1957 foi ordenado na diocese de Rottenburg. Em 1961 concluiu sua tese de doutorado, passando a ser assistente de Leo Scheffczyk e Hans Küng. Lecionou nas universidades de Münster, que também presidiu, e de Eberhard-Karls-Universität die Tubinga. Em 1985 foi nomeado secretário especial do Sínodo extraordinário, tornando-se também membro da Comissão Teológica Internacional. Foi sagrado bispo da diocese de Rottenburg (Stuttgart) em 1989. Em 1994 foi nomeado co-presidente da Comissão Internacional para o Diálogo Luterano-Católico e em março de 1999 secretário do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, sendo elevado a cardeal em 2001 por João Paulo II. Visando refletir os passos desse importante membro da Cúria Romana, foi publicado em 2009, na Itália, um livro sobre sua vida e obra. Da Alemanha de Hitler, ao pós-concílio e suas irresolutas questões nesse início de milênio, a obra traz um panorama rico e cheio de interessantes nuances sobre o catolicismo contemporâneo. Escrito em forma de diálogo, o texto traz muitas informações relevantes para aqueles que visam compreender a história da Igreja na segunda metade do século XX e a conjuntura vaticana atual. De sua primeira formação, Kasper relembra seus passos na Alemanha da Segunda Grande Guerra e dos anos posteriores ao seu encerramento. Da fase de seus estudos em Tubinga, o cardeal rememora as influências sofridas das leituras de Johann Adam Mohler – maior expoente dessa universidade e “pioneiro da teologia ecumênica contemporânea” (p. 30) –, teólogo que contribui profundamente na renovação da consciência eclesial, que tirará seus frutos maduros somente no Vaticano II. Além de Mohler, John Henry Newman – que também foi influenciado por aquele teólogo – também o influenciará com o seu L’Apologia pro vita sua.

Segundo Kasper, os textos que o haviam influenciado, por volta do final dos anos 1950 eram os “Escritos” de Karl Rahner, a teologia do laicato de Yves Congar e o pensamento de Henri de Lubac. De acordo com suas próprias palavras, estes três teólogos tiveram um “efeito de ruptura” em sua formação. Em 1962, logo finalizado seu doutorado em Dogmática, tornou-se assistente em Tubinga de Leo Scheffczyk e de Hans Küng e nos anos posteriores escreveu seu trabalho de livre-docência intitulado “O absoluto na história” sobre o pensamento de Schelling. Nele, Kasper demonstrava sua visão sobre o subjetivismo moderno, não enxergando simplesmente a modernidade apenas como uma revolta prometéica do sujeito contra a ordem de Deus, visão comum dos círculos embebidos de ultramontanismo. Um dos momentos mais interessantes do livro é a que reflete sobre o Vaticano II. Kasper comenta sobre o papel de Paulo VI, a crise e a renovação, as revistas Concilium e Communio, o ano de 1968, a encíclica Humanae vitae. Para o cardeal, a crise pela qual a Igreja romana passa não vem do concílio propriamente dito, mas já demonstrava seus sinais mesmo antes de sua realização e afirma sua tese interpretativa – exposta em um dos capítulos de seu eloqüente livro Teologia e Igreja – na qual é “completamente errôneo ver o concílio como uma ruptura com a tradição precedente, sobretudo com aquela do Concílio Vaticano I” (p. 51).

É falando sobre o ecumenismo que o cardeal se mostra mais a vontade e demonstra suas reais preocupações com a Igreja e suas relações com as outras tradições religiosas. Segundo ele, logo depois da eleição de Ratzinger à cátedra de Pedro, o novo papa assumiu sua preocupação de manter a causa ecumênica viva e levar a frente às preocupações dos padres do Vaticano II. Ao pensar a questão do primado papal em relação ao ecumenismo, Kasper afirma que é “graças ao ecumenismo a situação do ministério petrino mudou para melhor” (p. 126). Para ele, nunca na história da Igreja, e nem mesmo aquela antiga, o bispo de Roma foi um ponto de referência tão importante para todas as Igrejas como hoje. Nunca, continua, o ministério de Pedro gozou de uma autoridade espiritual tão grande, mesmo entre os outros cristãos, como acontece hoje.

Kasper afirma que o diálogo ecumênico não deve se limitar a um mínimo denominador comum, o que seria um empobrecimento de todas as partes. Para o cardeal, o ecumenismo “deve se basear sobre uma comum confissão de fé, que confessem reciprocamente a própria fé e queira trabalhar no diálogo por um consenso futuro na confissão da fé” (p. 172). Arremata: “quanto mais se é católico, tanto mais se é ecumênico, mas também: quanto mais se é ecumênico, tanto mais se é católico” (p. 173). Interessantíssimo livro para quem deseja se aprofundar na dinâmica curial e nas questões ecumênicas.

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KASPER, Walter; DECKERS, Daniel. Al cuore della fede: le tappe di una vita. Torino: San Paolo, 2009.

Isaiah Berlin diz



“O homem é incapaz da autoperfeição e, portanto, jamais inteiramente previsível; falível, uma combinação complexa de opostos, alguns conciliáveis, outros incapazes de serem resolvidos ou harmonizados; incapaz de interromper a sua busca da verdade, felicidade, novidade, liberdade, mas sem nenhuma garantia (…) de ser capaz de atingi-las; um ser livre e imperfeito capaz de determinar o seu próprio destino em circunstâncias favoráveis ao desenvolvimento de sua razão e seus dons” Isaiah Berlin em Ideias políticas na era romântica

O grande silêncio que fala


Publicado no jornal O Lutador

Estar no abandono do magnum silentio. Essa expressão, contida num folheto das orações das Completas – trecho do livro Liturgia del silenzio, de Anna Maria Canopi – , no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro chamou-me atenção. Primeiramente, não é muito comum estarmos propensos a visitar um mosteiro, e permanecer nele alguns dias, abandonados no grande silêncio – somente movimentados pelo ritmo dos sinos que nos chamam ao Ofício Divino – a fim de ouvir a voz do Eterno. Em verdade, no mundo de hoje, não estamos predispostos a cerrar nossos lábios nem por um segundo. Parece que, ou falamos o tempo inteiro – inclusive com nós mesmos –, reafirmando nossas opiniões e idéias sobre lá o que seja, ou estamos fadados ao fracasso – ou o pressentimos – daqueles que acreditam que só emitindo palavras sem fim e levantando bandeiras de todas as cores podem ser ouvidos. Perpassados pela pressa e o burburinho alucinante das grandes cidades, somos cotidianamente alvos de uma poluição sonora que não só inunda e cansa nossos ouvidos, mas também não deixa espaço para ouvirmos a voz que vem de nosso interior.
Esses dias no mosteiro – marcados por trabalho profissional, mas também espiritual –, aprofundou-se em mim as questões acerca do Deus absconditus, da importância do silêncio e da solidão para sermos receptáculos do som divino. Afirmou-se a verdade de que se pode ouvir o silêncio. De que o silêncio fala sem palavras. De que, ao nos colocar na posição de escuta, temos a chance de experimentar a “volta ao abismo de pura realidade na qual está baseada nossa própria realidade e na qual existimos”, como dizia Thomas Merton, um dos grandes nomes do monasticismo cristão do século XX. Como o próprio monge trapista ensina em seu belo livro Espiritualidade, contemplação, paz (traduzido pelas monjas do Mosteiro Nossa Senhora das Graças, de Belo Horizonte, e editado pela Itatiaia), a Queda, um dos dogmas centrais da fé cristã, levou-nos a um exílio de Deus e de nós mesmos. Nós, homens dos burburinhos, incansáveis na arte do falatório cheio de palavras vazias, caímos ao acreditarmos que poderíamos encontrar a felicidade fora de nós mesmos. Quantos são aqueles que hoje – num mundo cheio de soluções fáceis, que vez por outra, em uma literatura barata que se denomina de “auto-ajuda”, proclama que basta emanar energias positivas para o universo para que ele conspire a seu favor – sonham e idealizam uma vida feliz e “completa” numa praia paradisíaca, ou neste ou naquele país? Ou a felicidade “plena”, quando tiverem aquele carro x, aquela casa y, casar com “fulano de tal” ou mesmo se “refugiar” num mosteiro?
De fato, o que presenciamos nesse mundo marcado pelo marketing da alegria fácil, da resposta completa e imediata apresentadas por gurus do momento para minhas questões, da solução para todos os meus problemas agora, da utopia pessoal, da elevação do bem-estar a qualquer custo, da maximização do prazer e a minimização, custe o que custar, de qualquer tipo de sofrimento pessoal, é um homem desnorteado que, como um cachorro que corre atrás do próprio rabo, foge de si mesmo acreditando que com isso encontrará a paz que tanto anseia. Pergunto-me até que ponto o homem moderno, aquele que acreditou na ciência, no progresso, na história ou na revolução, “reedita” nosso lugar de decaídos ao afirmar uma felicidade que está logo ali, basta ter dinheiro – como diz por aí certa “ética burguesa”, “dinheiro não traz felicidade, mas compra” – para poder acessá-la e capacidade emocional para usufruí-la.
Entendo a religião, especialmente o cristianismo, como uma experiência religiosa que pode hoje, a partir de seu repertório teológico, especialmente aquele que vem dos padres da Igreja e da experiência dos monges do deserto – que viveram a solidão e o silêncio radicalmente frente a um cristianismo em expansão que passava a se coadunar com o poder imperial romano – fornecer-nos um manancial no qual nasça uma nova crítica em relação a esse mundo de felicidade em pílulas, anunciada a torto e a direito por oportunistas de plantão, que bem sabem aonde o calo aperta. E que por isso ganham fortunas. Tornarmo-nos “ao abismo de pura realidade”, ao silêncio que tudo diz. Render-se e abandonar-se a “uma Realidade completamente escondida, invisível e mesmo, em certo sentido, desconhecida”. Eis uma possibilidade crítica a esse mundo cheio de respostas, de visibilidade, de aparências, de “conhecimento”, que nada respondem, mas sim, afasta-nos de nós mesmos ao nos prometer o inalcançável.
Para uma compreensão sobre o silêncio e a vida monástica veja o belíssimo filme “O grande silêncio” (‘Die grosse Stille’) , de Philip Gröning.

Comissão Ecclesia Dei volta a responder questionamentos sobre a aplicação do Motu Proprio Summorum Pontificum