Lefebvrianos no Vaticano: encontro de degelo depois de 21 anos

Texto de Andrea Tornielli no Il Giornale

Tradução livre

Roma. O encontro de degelo entre a Santa Sé e os lefebvrianos, o primeiro desde 1988 para discutir sobre temáticas doutrinais, iniciou-se às 9:30 de ontem, no palácio do Santo Ofício, e se alongou até 13:30. Encontraram-se entorno de uma mesa os peritos da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, guiada pelo monsenhor Guido Pozzo, e aqueles da Fraternidade São Pio X, guiada pelo bispo Alfonso de Gallareta. "Em um clima cordial, respeitoso e construtivo - referia-se a Sala de imprensa do Vaticano - foram evidenciados as maiores questões de caracteres doutrinais que serão discutidos no curso dos colóquios que prosseguiram nos próximos meses". "Em particular - continua a nota - se examinarão as questões relativas ao conceito de Tradição, o missal de Paulo VI, a interpretação do Concílio Vaticano II em continuidade com a Tradição doutrinal católica, os termos da unidade da Igreja e dos princípios católicos do ecumenismo, da relação entre Cristianismo e as religiões não-cristãs e da liberdade religiosa". É o elenco das questões doutrinais que os lefebvrianos sustentam como problemáticas e que estão ligadas à interpretação do Concílio. "Ocorreu tudo bem, as dificuldades existem - confia ao Giornale um dos presentes - mas o início foi bom". "Antes do encontro, já há alguns dias os lefebvrianos tinham recebido do Vaticano um conjunto de textos preparatórios com os argumentos em discussão. O debate iniciado ontem vê a Fraternidade sustentar que alguns textos conciliares não são compatíveis com a tradição, enquanto os peritos da Santa Sé afirmam o contrário. Não se pode prever quanto tempo durarão os colóquios - continua a fonte vaticana - decidimos que serão realizados uma vez a cada dois meses, assim nos encontraremos logo depois do natal". Mas nesse intervalo se trabalhará, e alegremente, usando o e-mail para trocar considerações, perguntas, a fim de se chegar na próxima reunião, o quanto possível, com algum ponto em concórdia"

Em Getsêmeni...


vangogh

Tua claridade é minha escuridão. Eu nada conheço de

Ti e por mim mesmo, nem posso imaginar como

proceder para Te conhecer. Se eu Te imagino, estou

errado. Se eu Te entendo, me engano. Se estou cons-

ciente e certo de conhecer-Te, sou louco. A escuridão

basta.

Thomas Merton

O despotismo das massas incautas

Falar em “verdade” hoje em dia é praticamente visto como um suicídio intelectual e moral. No campo do senso comum que se quer “esclarecido”, qualquer coisa que se diga e que se referencia um “quê” de verdade daquilo que está sendo afirmado é considerado por muitos como simplesmente mais um ato de intolerância ou fundamentalismo. Há muito a idéia de que não existem verdades, mas sim apenas construções sociais das verdades vêm dominando a cena da cultura de massas e até mesmo alguns meios intelectuais. Não existe uma verdade sobre isso ou aquilo, mas verdades construídas por indivíduos que estão inseridos num tempo. “Tudo é histórico”, e nada mais que isso. De fato, sabemos que necessariamente todo discurso é construído por seres inseridos no tempo. Toda fala é dita de um lugar. A nossa consciência hermenêutica – que parece ter crescido em reflexão e propostas – nos leva a tal conclusão. A verdade só se daria, como diz o filósofo italiano Luigi Pareyson, na interpretação histórica, – de modo expressivo (histórico), mas também de maneira revelativa (ontológica) – contudo, sempre de forma inexaurível. Entretanto, no deserto atual do ser cada um se acha dono da verdade, da sua verdade.

A imagem que costumo usar para caracterizar o homem desse mundo é aquela de que somos pequenas “igrejinhas de nós mesmos” ou, para usar uma figura mais forte, “ditaduras de si mesmos”. Claro que essa imagem, levada ao extremo da metáfora, foi sendo construída lentamente através de séculos, passando pela Reforma Protestante, a emergência da ciência moderna com o método cartesiano e o empirismo de Hume, pelo pensamento de Kant e pelas noções políticas surgidas na Revolução Francesa e posteriormente consolidadas nos inúmeros Estados liberais-democráticos que emergiram na sua esteira. Criar um mundo novo, que respirasse a liberdade sem qualquer tipo de constrangimento – e naquele período era a religião o instrumento de organização social – levou o homem ocidental a uma situação peculiar. Livre de possíveis abusos daqueles que se situam no exercício do poder constituído – pelo menos naqueles países que se dizem constitucionalistas – tornaram-se propensos a se pensarem como o início e o fim da autoridade, do conhecimento.

Não podemos negar que o homem do século XX chegou a um extremo na sua auto-compreensão: qualquer tipo de autoridade passou a ser entendida como uma barreira que possivelmente impossibilitaria as minhas escolhas pretensamente livres. Tal ideia nos trouxe a uma confusão que impera na cabeça de muitos, principalmente dos mais jovens, sedentos por respostas: autoridade confundindo-se com autoritarismo. E se uma coisa leva a outra, ou é a outra, nada podemos fazer a não ser negar qualquer tipo de autoridade a fim de sermos realmente livres. “Toda autoridade é opressiva, instrumento de legitimação de uma ‘verdade’ construída e opressora, que não deixa margem para a livre capacidade humana de criar, de se criar”, diriam alguns. De fato, poderíamos concluir momentaneamente com o antropólogo René Girard em seu belo livro Coisas ocultas desde a fundação do mundo que “os modernos imaginam que seus mal-estares e seus dissabores provêm de entraves que opõem os desejos aos tabus culturais, aos interditos culturais, e mesmo em nossos dias às proteções legais dos sistemas judiciários”.

Não faltaram aqueles pensadores que, no decorrer do processo, viram surgir essa espécie de homem, nem um pouco afeito a se submeter a qualquer verdade, já que todas elas, para ele, são apenas frutos de interditos históricos que devem ser colocados ao chão. Ortega y Gasset, por exemplo, afirmava em seu A rebelião das massas que o século XIX e XX europeu viveram o que chama de ascensão do “homem-massa”. Para o filósofo espanhol, esse homem se caracterizaria principalmente por ser “um homem hermético, que não está verdadeiramente aberto a nenhuma instância superior”. Robert Musil deixa claro as características desse “novo homem” já no título de seu grandioso romance O homem sem qualidades. Em uma das páginas afirmava sobre esse homem: “Qualquer má ação lhe parece boa em algum aspecto. É o possível contexto que vai determinar o que ele pensa de um assunto. Para ele, nada é sólido. Tudo é mutável, parte de um todo, de incontáveis todos, que provavelmente fazem parte de um supertodo, mas que ele absolutamente não conhece. Assim, todas as respostas dele são respostas parciais, cada um de seus sentimentos é apenas um ponto de vista, e para ele não importa o que a coisa é, e sim um secundário ‘como é’”. O poeta T.S Eliot também escreveu algumas palavras sobre esses homens, Os homens ocos: “Nós somos os homens ocos/ Os homens empalhados/ Uns nos outros amparados/ O elmo cheio de nada. Ai de nós!/ Nossas vozes dessecadas,/ Quando juntos sussurramos,/ São quietas e inexpressas/ Como o vento na relva seca/ ou pés de ratos sobre cacos/ Em nossa adega apavorada”. Estaremos a salvo quando esses homens, como zumbis sedentos de sangue, se acreditam como os legítimos portadores da liberdade, já que são, indubitavelmente, a maioria? Não estaremos fadados assim, como dizia Tocqueville, à “tirania da maioria”, “que sempre tem os gostos e os instintos de um déspota”?