Da pedofilia e de homens

Há muito, dizem os estudiosos, a Igreja não passa por uma crise tão séria como a que vem enfrentando em relação ao caso dos “padres pedófilos” – especialmente depois da matéria do The New York Times, que quis ligar Ratzinger pessoalmente ao problema. De fato, nada mais sério e triste para os fiéis verem vir à tona estes casos horrendos em inúmeros países. Realmente, não se pode virar o rosto para questão tão grave e que assola a Igreja por décadas. Medidas enérgicas devem sim ser colocadas em andamento dentro da instituição a fim de conter os casos, puni-los exemplarmente e evitar que novamente se repitam. Nada mais sagrado do que a vida, e, especialmente dos pequeninos, indefesos que são. Acontece que é claro o desejo de alguns setores de verem o próprio papa envolvido com os escândalos, com alguns pedindo até mesmo a suarenúncia. Que é necessário medidas enérgicas contra estes que atentaram contra a vida é mais que claro. Nada de meias palavras. Contudo, claro também é a movimentação destes setores contra Bento XVI. Ratzinger, quando assumiu o trono papal, já deveria prever que sua tarefa não seria nada fácil e que sofreria ataques múltiplos de todos os lados, não só do exterior mas também, e especialmente, de setores católicos que não engolem a sua política de “reequilíbrio” das forças que, no pós-Vaticano II, penderam para uma noção de Igreja “a la Di Fiore”, que se transigiria facilmente com os valores modernos e que chegaria de vez aos “novos tempos”. Não sou do tipo que acredita em complôs e coisas parecidas (deveria acreditar?) - o que a alta hierarquia parece crer e levanta sua voz legitimamente - , mas acredito em lobby, e que devem haver grupos que se interessam por um enfraquecimento moral da Igreja católica no mundo. É também mais que claro que o problema da pedofilia na Igreja seria ligado por alguns – especialmente uma mídia sensacionalista – estritamente à questão do celibato, “como se os abusos não acontecessem também na família”, como afirma um curial, Walter Kasper. As massas adoram essas coisas. Aquelas mesmas massas que saíram repetindo por todos os lados as “descobertas” de Dan Brown. A questão da pedofilia na Igreja torna-se, claramente, em ataque ao celibato. Tal instituição milenar já foi atacada inúmeras vezes durante a história da Igreja, e agora passa por mais um deles. Prefiro acreditar que uma coisa não tem uma relação direta com a outra. Inclusive porque tal fato não ocorre só na Igreja romana, mas encontra-se por todos os lados, inclusive em outras igrejas, como as protestantes dos Estados Unidos, que reportam 260 casos de pedofilia por ano. Se dizem por aí que existe um certo movimento dentro do próprio Vaticano para repensar o celibato, tal movimento não se dá exclusivamente devido aos escândalos. Pode ser, equivocadamente, encorajado por ele, mas não é uma resposta a ele. Algunsdizem que isto tudo que está acontecendo é fruto da ação do diabo, que está dentro da própria Igreja, e “bem pertinho” do papa. Na verdade, o “coisa ruim” está bem perto da onde estão os homens, ou seja, aqui, bem pertinho, não só do papa, mas de todos nós.

Lefebvriano radical coloca fogo nos documentos do Vaticano II

Dom Floriano Abrahamowicz - padre expulso da Fraternidade São Pio X - suscita outra polêmica ao colocar fogo no livro que traz os documentos do Concílio Vaticano II depois de uma missa. Entre radicalidades e busca de consenso com Roma, as divisões na Fraternidade, parece, que se aprofundarão ainda mais. Veja o video aqui.

O Vaticano II e os herdeiros de Joachim di Fiore

Mais uma vez Bento XVI deixa claro a que veio: levar a cabo, não exatamente uma "restauração" do "espírito tridentino", mas um reequilíbrio de tendências, no mais das vezes, contrapostas no interior da Igreja. Em sua audiência geral da última quarta (video aqui), Bento XVI afirmou "que após o Concílio Vaticano II, alguns estavam convencidos de que tudo seria novo, de que haveria outra Igreja, de que a Igreja pré-conciliar tinha acabado e de que teríamos totalmente ‘outra’." Citando Joachim di Fiore, Ratzinger afirmou que em alguns setores da Igreja se vive uma espécie de "espiritualismo utópico", que se opõe claramente à hierarquia da Igreja, reeditando, sem sombras de dúvida, o simbolismo construído por Fiore no século XIII, e que levou ao surgimento do dito "franciscanismo espiritual". Desde o próprio concílio, nos seus momentos finais, já se nota aqueles que vêem uma "nova fase" da história da Igreja, como se fosse a última, o "fim da história", bem ao estilo de Fukuyama. De fato, a de se concordar que transformações ocorrem, mudanças de percepção. Mas o próprio concílio deve ser entendido como um momento de reequilíbrio, como nos disse uma vez o historiador da Igreja Émile Poulat. Um momento de inflexão, não o fim da história.

Livro reflete trajetória do Cardeal Kasper

Publicado no Jornal O Lutador

Walter Kasper é atualmente um dos mais importantes cardeais da Igreja católica, presidindo o importante Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Contemporâneo dos também alemães Joseph Ratzinger e Karl Lehmann, Walter Kasper realizou seus estudos em filosofia na cidade de Tubinga e Mônaco, concluindo-o em 1956. Em 1957 foi ordenado na diocese de Rottenburg. Em 1961 concluiu sua tese de doutorado, passando a ser assistente de Leo Scheffczyk e Hans Küng. Lecionou nas universidades de Münster, que também presidiu, e de Eberhard-Karls-Universität die Tubinga. Em 1985 foi nomeado secretário especial do Sínodo extraordinário, tornando-se também membro da Comissão Teológica Internacional. Foi sagrado bispo da diocese de Rottenburg (Stuttgart) em 1989. Em 1994 foi nomeado co-presidente da Comissão Internacional para o Diálogo Luterano-Católico e em março de 1999 secretário do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, sendo elevado a cardeal em 2001 por João Paulo II. Visando refletir os passos desse importante membro da Cúria Romana, foi publicado em 2009, na Itália, um livro sobre sua vida e obra. Da Alemanha de Hitler, ao pós-concílio e suas irresolutas questões nesse início de milênio, a obra traz um panorama rico e cheio de interessantes nuances sobre o catolicismo contemporâneo. Escrito em forma de diálogo, o texto traz muitas informações relevantes para aqueles que visam compreender a história da Igreja na segunda metade do século XX e a conjuntura vaticana atual. De sua primeira formação, Kasper relembra seus passos na Alemanha da Segunda Grande Guerra e dos anos posteriores ao seu encerramento. Da fase de seus estudos em Tubinga, o cardeal rememora as influências sofridas das leituras de Johann Adam Mohler – maior expoente dessa universidade e “pioneiro da teologia ecumênica contemporânea” (p. 30) –, teólogo que contribui profundamente na renovação da consciência eclesial, que tirará seus frutos maduros somente no Vaticano II. Além de Mohler, John Henry Newman – que também foi influenciado por aquele teólogo – também o influenciará com o seu L’Apologia pro vita sua.

Segundo Kasper, os textos que o haviam influenciado, por volta do final dos anos 1950 eram os “Escritos” de Karl Rahner, a teologia do laicato de Yves Congar e o pensamento de Henri de Lubac. De acordo com suas próprias palavras, estes três teólogos tiveram um “efeito de ruptura” em sua formação. Em 1962, logo finalizado seu doutorado em Dogmática, tornou-se assistente em Tubinga de Leo Scheffczyk e de Hans Küng e nos anos posteriores escreveu seu trabalho de livre-docência intitulado “O absoluto na história” sobre o pensamento de Schelling. Nele, Kasper demonstrava sua visão sobre o subjetivismo moderno, não enxergando simplesmente a modernidade apenas como uma revolta prometéica do sujeito contra a ordem de Deus, visão comum dos círculos embebidos de ultramontanismo. Um dos momentos mais interessantes do livro é a que reflete sobre o Vaticano II. Kasper comenta sobre o papel de Paulo VI, a crise e a renovação, as revistas Concilium e Communio, o ano de 1968, a encíclica Humanae vitae. Para o cardeal, a crise pela qual a Igreja romana passa não vem do concílio propriamente dito, mas já demonstrava seus sinais mesmo antes de sua realização e afirma sua tese interpretativa – exposta em um dos capítulos de seu eloqüente livro Teologia e Igreja – na qual é “completamente errôneo ver o concílio como uma ruptura com a tradição precedente, sobretudo com aquela do Concílio Vaticano I” (p. 51).

É falando sobre o ecumenismo que o cardeal se mostra mais a vontade e demonstra suas reais preocupações com a Igreja e suas relações com as outras tradições religiosas. Segundo ele, logo depois da eleição de Ratzinger à cátedra de Pedro, o novo papa assumiu sua preocupação de manter a causa ecumênica viva e levar a frente às preocupações dos padres do Vaticano II. Ao pensar a questão do primado papal em relação ao ecumenismo, Kasper afirma que é “graças ao ecumenismo a situação do ministério petrino mudou para melhor” (p. 126). Para ele, nunca na história da Igreja, e nem mesmo aquela antiga, o bispo de Roma foi um ponto de referência tão importante para todas as Igrejas como hoje. Nunca, continua, o ministério de Pedro gozou de uma autoridade espiritual tão grande, mesmo entre os outros cristãos, como acontece hoje.

Kasper afirma que o diálogo ecumênico não deve se limitar a um mínimo denominador comum, o que seria um empobrecimento de todas as partes. Para o cardeal, o ecumenismo “deve se basear sobre uma comum confissão de fé, que confessem reciprocamente a própria fé e queira trabalhar no diálogo por um consenso futuro na confissão da fé” (p. 172). Arremata: “quanto mais se é católico, tanto mais se é ecumênico, mas também: quanto mais se é ecumênico, tanto mais se é católico” (p. 173). Interessantíssimo livro para quem deseja se aprofundar na dinâmica curial e nas questões ecumênicas.

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KASPER, Walter; DECKERS, Daniel. Al cuore della fede: le tappe di una vita. Torino: San Paolo, 2009.

Isaiah Berlin diz



“O homem é incapaz da autoperfeição e, portanto, jamais inteiramente previsível; falível, uma combinação complexa de opostos, alguns conciliáveis, outros incapazes de serem resolvidos ou harmonizados; incapaz de interromper a sua busca da verdade, felicidade, novidade, liberdade, mas sem nenhuma garantia (…) de ser capaz de atingi-las; um ser livre e imperfeito capaz de determinar o seu próprio destino em circunstâncias favoráveis ao desenvolvimento de sua razão e seus dons” Isaiah Berlin em Ideias políticas na era romântica