Há 50 anos, no dia 25 de janeiro de 1959, João XXIII convocava o Concílio Vaticano II. Em meio a receios, dúvidas e esperanças que o ato despertou, o concílio foi, e continua sendo, considerado como um dos grandes eventos da história do século XX e o maior evento do cristianismo no século passado. Fato incontestável foi a vastidão de esforços de bispos do mundo todos para que a Igreja fosse capaz de um aggiornamento, como desejava o próprio papa Roncalli. O concílio, como evento, é delimitado por um tempo, entre janeiro de 1959, ano de sua convocação, até dezembro de 1965, quando se finaliza. Contudo, como nos demonstram os fatos, a sua recepção continua, marcada por crises, ambigüidades, desconfianças, acusações e também ressentimentos. Quando se fala no concílio nos meios eclesiásticos, seja ele entre o baixo e alto clero, o que se sente é que cada um é um pouquinho seu dono e intérprete. Todos têm algo a dizer sobre ele, a dizer o que significou, a apontar seus traidores, as suas vitórias e conquistas, como deveria ser recepcionado; um infindável rol de considerações e palpites. Como tudo o que diz respeito à Igreja Católica, e aí os palpites não se concentram só nos meios eclesiásticos, todo mundo tem algo a dizer e a sugerir às altas instâncias de poder da Santa Sé o que deveria ser feito para que a Igreja se restabelecesse, seja lá isso o que for.
Não poderia ser diferente agora. Um dia antes do aniversário de 50 anos da convocação do Vaticano II, Bento XVI toma mais uma atitude que faz alguns soltarem fogo pelas ventas, como diriam alguns. O papa, na esteira das conversações com Bernard Fellay, o capo da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), e da promulgação do moto proprio Summorum Pontificum em julho de 2007, que possibilita aos padres e fiéis usufruírem da forma “extraordinária” do rito romano, ou seja, a dita “missa tridentina”, agora, levanta a excomunhão perpetrada sobre os quatro padres da FSSPX que foram sagrados bispos por Marcel Lefebvre e Antônio de Castro Mayer (Campos) em 1988. A história é longa, mas merece alguns apontamentos. Antes mesmo do Vaticano II, Lefebvre, Castro Mayer e Geraldo de Proença Sigaud (Diamantina) já se aproximavam devido às afinidades teológicas e políticas. Anticomunistas ferrenhos e teologicamente marcados pela escolástica, os três desempenharam papel de suma importância nos trabalhos conciliares: organizaram a minoria e, junto com alguns membros da cúria, tentaram, insistentemente, frear os avanços que se impunham pela maioria encabeçada pelos prelados de alguns países nórdicos. Intransigentes com qualquer daqueles que desejassem transigir com a modernidade e seus valores, estes padres constituíram um verdadeiro eixo de contenção dentro do concílio, conseguindo mesmo ter acesso direto a Paulo VI com cartas que denunciavam os possíveis perigos de algumas posições para a doutrina católica. Finalizado o concílio, os caminhos seguidos por cada um deles diferenciou-se: Lefebvre e Mayer radicalizaram pouco a pouco seus discursos em defesa da Igreja “de sempre” contra a Igreja “apóstata e liberal” nascida do Vaticano II, enquanto Sigaud manteve, podemos dizer, a linha dura, sustentando suas críticas do concílio, mas recepcionando-o seletivamente em sua diocese. O tom polêmico e de dissenso de Lefebvre e Mayer e algumas questões canônicas referentes ao reconhecimento por parte da Santa Sé da recém-fundada FSSPX faz Paulo VI suspender o prelado francês a divinis em 1976 e a excomungá-lo, junto com Castro Mayer, em 1988, quando sagraram quatro novos bispos sem mandato pontifício. Aqueles que agora Bento XVI levanta a excomunhão. A partir de então, João Paulo II instituiu a Comissão Pontifícia Ecclesia Dei a fim de manter o diálogo com os seguidores de Lefebvre, morto em 1991, de tal maneira que os inserisse novamente na plena comunhão da Igreja.
Os anos se passaram e Bernard Fellay, o responsável atual pela FSSPX, decidiu tentar uma reaproximação com Roma e desde o ano retrasado, principalmente depois da Summorum Pontificum, escutam-se rumores de que Bento XVI tomaria posições em favor da Fraternidade. Passeando por sites especializados em notícias do Vaticano e lendo alguns jornais que repercutiram a notícia, nota-se que as interpretações sobrepõem-se. A mais comum é aquela que defende que essa posição do papa demonstra mais uma vez seu ímpeto conservador e a sua “quedinha” pelos tradicionalistas. Pode até ser. Mas prefiro pensar que a atitude se insere numa perspectiva mais complexa dos movimentos da Igreja nesse início de século e milênio. Tento fazer-me entendido: Bento XVI, desde sua ascensão ao trono papal, insiste que a crise pela qual a Igreja Católica atravessa no “pós-concílio” (termo que abomina) é fruto, principalmente, da hermenêutica da descontinuidade que se impôs nas interpretações sobre o Vaticano II nesses seus cinquenta anos. Entender o concílio como um novo começo seria separar a Igreja de sua história. Também essa visão teve sucesso no campo litúrgico. A idéia de que o “Missal de Paulo VI” estava em oposição ao antigo missal, publicado pela última vez por João XXIII em 1962, inseria a idéia de ruptura também na liturgia. Tal idéia, que tem como pano de fundo a hermenêutica descontínua, é celebrada tanto por tradicionalistas como por progressistas. “Não podemos dar um passo a trás e voltarmos para a missa tridentina, seria a negação completa do concílio”, diriam os últimos. “É inaceitável o ‘Missal de Paulo VI’, que rompe com a tradição secular da Igreja”, diriam os primeiros. O que o papa Ratzinger parece procurar é, a partir das questões litúrgicas, perpassadas também indiscutivelmente por tensões teológicas, demonstrar que na liturgia não existe rupturas, mas sim um caminho evolutivo. Com o levantamento das excomunhões, Bento XVI parece colocar mais uma pedra em cima das interpretações descontínuas do Vaticano II. Terá sucesso? A história mostrará.
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