Pérolas de Maritain em Le Paysan de la Garone


Contra a falsa afirmação de que Maritain é um daqueles "arrependidos" do concílio, (Alberto Melloni e outros) posto alguns textos do intelectual escritos em 1966, ou seja, um mês depois da conclusão dos trabalhos conciliares. Nota-se que seria muito pouco tempo para Maritain ter se arrependido do concílio. Por alguns trechos que seguem é possível ver que ele não se arrepende do concílio, mas chama atenção para os problemas que surgem daqueles que desejam fazer dele um momento de novidade completa e absoluta, sem se preocuparem com a longa duração da Igreja. Bem, faço algumas reflexões, em vermelho, de alguns trechos. Espero que possa ser útil para os aficcionados pela história da Igreja. Se desejarem citar algum dos trechos, a página da onde foi retirado segue logo depois da citação.

Maritain, Jacques. O camponês do garona: um velho leigo no concílio. Lisboa: União Gráfica, 1967. [originalmente publicado em França em 1966]


"desde o princípio e pela própria vontade de João XXIII, foi ele mais pastoral do que doutrinal [...]. E é claro que isso repondia a um desígnio providencial; porque a tarefa histórica, a imensa renovação que devia levar a bom termo, dizia respeito ao progresso mais na tomada de conscência evangélica e na atitude do coração do que nos dogmas a definir. Mas, meu Deus, não estavam já definidos esses dogmas, e para sempre? [...] Não está, porventura, fundada a doutrina da Igreja na certeza e sobre bases tão sólidas para permitir que progrida indefinidamente, por todos os Concílios precedentes e por um trabalho secular? Que homem haverá, que, tendo recebido a fé teologal, seja tão louco para imaginar que certezas eternas se criam por agitar-se, abrindo dúvidas a pontos de interrogação, podendo liquefazer-se ao sabor do tempo? (p. 13) Quais homens, Maritain?! Muitos! A noção de que o Vaticano II inicia "momento novo" é recorrente. E em si não está equivocado. Contudo, com essa noção pensam que tudo pode ser transformado, inclusive a doutrina multisecular...


"As almas estão ávidas de autentcidade, de franqueza, de dedicação a uma tarefa comum; descobrem com uma espécie de embriaguez o mistério do ser humano, as possibilidades e os requisitos do amor fraternal. É como que uma nostalgia do Evangelho e de Jesus" (p. 14). Ou seja, o Vaticano II veio a termo devido, inclusive, por essa sede do mistério humano, essa nostalgia de Cristo e sua vida.


"Tendo em vista a febre neo-modernista bastante contagiosa, pelo menos nos círculos denominados 'intelectuais', comparado com a qual o modernismo de Pio X não é senão uma modesta febre dos fenos, e que encontra expressão sobretudo nos pensadores mais avançados entre os nossos irmãos protestantes, mas que também é activa nos pensadores católicos igualmente avançados, esta segunda descrição dá-nos o quadro de uma espécie de 'apostasia imanente' (compreendo que ela está decidida a ficar cristã a todo o custo), em preparação já de há muitos anos, levantadas aqui e acolá por ocasião do Concílio, aceleram a manifestação - mentirosamente imputada, às vezes, ao 'espírito do Concílio', isto é, 'ao espírito de João XXIII'. Sabemos muito bem a quem se deve atribuir a paternidade de tais mentiras (e tanto melhor se assim o homem fica um pouco desonrado) [...]" (p. 15) Essa é a parte, ao meu ver, mais importante do texto do filósofo. Maritain aponta que o modernismo combatido por Pio X nada mais é do que um pequeno resfriado perto da "febre modernista" que no concílio, e no pós-concílio, se sucedeu. E tal "febre" se liga ao famoso termo dito insistentemente por João XXIII, aggiornamento e aquele "espírito do concílio", compreendido de forma abstrata e sem dizer muita coisa. Melhor dizendo, tais conceitos dizem muito, mas para aqueles que fazem deles mantras de intenções não raras vezes descompromissadas com a verdade, e que visam, em último lugar, como se fosse possível ocorrer, a mudança essenciais da fé cristã. Ah! Daria um rim para saber que é esse que Maritain acusa como o pai de tais mantras...Alguém sabe?!


"Temos de por letras minúsculas por toda a parte. 'Tudo é relativo, eis o único princípio absoluto', já nos dizia o nosso Pai Augusto Comte [...] Acrescento, porém, que ele era mais honesto que vós, estudiosos expurgadores das verdades reveladas: porque os mitos da sua 'Síntese subjectiva' fabricava-os ele, decidida e francamente com todas as peças, e não, como vós fazeis, reinterpretanto toda uma herança religiosa à qual vos julgais mais fiéis que ninguém, mas procurando enganar a sede e o coração daqueles de cuja fé imaginais participar" (p. 17)


"o que importa ressaltar é que o modernismo desenfreado dos nosso dias é irremediavelmente ambivalente. Tende por sa natureza, embora o conteste, a arruinar a fé cristã, envidando os seus melhores esforços para a esvaziar de todo o conteúdo. Mas a verdade é que há um bom número de indivíduos que o aceitam como um esforço para dar a esta fé uma espécie de testemunho desesperado. Porque é sinceramente, não há dúvida, e por vezes na febre e na angústia de uma alma profundamente religiosa, que os corifeus do nosso neo-modernismo se declaram cristãos." (p.18) Maritain desculpa os "neo-modernistas" pela, vamos dizer, boa vontade de dar testemunho no meio de tantas incertezas...São sinceros no erro, diríamos...


"não é de admirar que tantos modernistas acreditem ter a missão de salvar para o mundo moderno um cristianismo agonizante - o seu cristianismo agonizante? É para esse objectivo que eles se dedicam como bons soldados de Cristo realizando um trabalho esgotante de hermenêutica. E o seu fideísmo, por muito contrário que seja à fé cristã, é, contudo, um testemunho sincero e atormentado prestado a esta fé." (p. 19)


"o seu cristianismo [...] o motivo principal, contudo, ao qual dão, cegamente, uma prevalência absoluta, é na realidade um desejo ardente de fazer passar à história o testemunho do Evangelho. Ainda uma extravagância da natureza humana: é com uma fé atormentada, e também mal iluminada, mas uma fé sincera em Jesus Cristo, que eles atraiçoam a Igreja à força de a quererem servir (à sua maneira)" (p. 20).

Falando sobre o concílio:

"No que diz respeito à atitude do cristão para com o mundo, o pêndulo desloco-se, de repente, para o extremo oposto do desprezo quase maniqueu do mundo professado no ghetto cristão, do qual está prestes a evadir-se. E, desta vez, não é diante de uma aberração projectada para dentro, sob formas torturantes e tenebrosas que nos encontramos; é, sim, diante de uma aberração projectada para fora com todo o brilho e a feliz arrogância de uma razão dementada pela embriaguez da novidade: segundo fruto venenoso, tão perigoso, e, porventura (por causa deste carácter intelectual), mais perigoso que o primeiro, mas que será provavalmente de menor duração, que o longo equívoco de que estou aqui tratando: porque, quando a loucura assume, entre os cristãos, dimensões consideráveis, torna-se necessário ou que ela desapareça rapidamente, ou que os afaste, decididamente, da Igreja. Mas que loucura? O ajoelhar-se diante do mundo." (p. 68). Em qual ponto será que nos encontramos?


"o Papa recomendou-nos que o aggiornamento não é, de modo algum, uma adaptação da Igreja ao mundo, como se este houvesse de regulamentar aquela; é pôr em dia posições essenciais da própria Igreja. Pois bem, a insistência do esquema XIII [Constituição pastoral sobre a condição humana no mundo de hoje] sobre a pessoa humana é uma notável ilustração dessa verdade. Efectivamente o que ali aparece, é um contraste chocante entre a Igreja e o mundo. Nesta comunidade de pessoas humanas que é uma sociedade, a Igreja, conforme as exigências da verdade, dá o primado à pessoa sobre a comunidade, ao passo que o mundo de hoje dá primazia à comunidade sobre a pessoa. Desacordo bastante significativo, e de alto interesse. Na nossa idade de civilização, a Igreja tornar-se-á, cada vez mais - e bendita seja Ela - o refúgio e o apoio, porventura único, da pessoa [...] Considerando-se, portanto, na perspectiva do Genesis e da Suma Teológica, ou por outras palavras, considerando a natureza humana e o mundo, naquilo que os constitui em si mesmos, a Constituição pastoral afirma de ambos, sem rodeios, a sua bondade radical e o apelo para o progresso que pode ser contrariado, ou pela ambiguidade da matéria ou pelas feridas do pecado, mas que se encontra inscrito na sua essência. E mostra, de uma maneira, não só geral, mas numa análise muito puxada e com aquela inteira generosidade que decorre da divina caridade, como a Igreja, permanecendo sempre no domínio da sua missão toda espiritual e das coisas que pertencem a Deus, pode e quer ajudar o mundo e a espécie humana no esforço para avançarem para os seus fins temporais. A dizer a verdade é a doutrina perenal da Igreja que se encontra, assim, reafirmada - mas com notas novas e singularmente importantes: porque ela é reafirmada sob o signo da liberdade - não para reivindicar o direito da Igreja intervir ratione peccati nas coisas do mundo, para nele reprimir o mal [...], mas para declarar o seu direito e a sua vontade de animar, estimular e assistir do alto, ratione boni perficiendi, por assim dizer, e sem invadir a autonomia do temporal, os desenvolvimentos do mundo para um maior bem a atingir." (p. 69). Nunca havia lido nada parecido. Maritain consegue achar na Constituição tal relação entre a Igreja e o mundo. Profético.


"Também é verdade [...] que o segundo Concílio do Vaticano foi o anúncio de uma idade nova. Desta, o próprio Concílio [...] indicou os grandes traços, ao passo que aggiornamentava os eternos tesouros da Igreja, graças a uma tomada de consciência mais profunda e a uma melhor explicitação de certas verdades encerradas nestes tesouros. Por outro lado, podemos notar que, por um paradoxo que não é raro na história humana, acontece que aquilo que é disforme e torcido vai à frente do que é direito, assim como os produtos da imitação batem os produtos autênticos" (p. 84). Como disse anteriormente, o Vaticano II pode ser compreendido como um momento novo na história da Igreja...Mas a parte marcante desse trecho é a questão da própria recepção do concílio. Em 1966 Maritain já via as contendas e as interpretações equívocadas do concílio. O "que é disforme e torcido vai à frente do que é direito". É a nossa situação atual. Quando o "direito" se imporá só Deus sabe!


"O verdadeiro fogo novo, as descobertas autênticas que se produzirão na idade nova em que entramos, e pelas quais, nas perspectivas históricas abertas pelo Concílio, a consciência cristã há-de penetrar mais para a frente, e mais profundamente na verdade de que ela vive e na realidade evangélica, nada terão que ver com a solicitação de velhos desejos recalcados e de ambições confusas, feita pelos agentes de publicidade do Velho Mentiroso, nem com o seu aranzel pseudo-científico e pseudo-filosófico, nem com aquela santa parusia do Homem, em nome da qual reclamam um ajoelhamento cristão diante do mundo. O verdadeiro fogo novo, renovação essencial, será uma renovação interior." (p. 83) Lindo! O Vaticano II exige uma renovação interior, conversão...


"Se não amarmos a verdade, não somos homens. E amar a verdade é amá-la acima de tudo, porque a Verdade, bem o sabemos, é o próprio Deus" (p. 108) Mais um tapa na cara do relativismo esquizofrênico.


"O integrismo é [...] um abuso de confiança cometido em nome da verdade: quer dizer, e a pior ofensa à Verdade divina e à inteligência humana. Apodera-se de fórmulas verdadeiras que esvazia do seu conteúdo e que põe a congelar nos refrigeradores de uma inquieta polícia dos espíritos [...] Nas fórmulas que ele gela, o integrismo vê e acarinha meios humanos de segurança - quer pela comodidade de intelectos que a fixidez tranquiliza dando-lhe com pouca despesa uma boa dose de fidelidade, de coerência interior e de firmeza; quer pela proteção, igualmente, barata, que estas fórmulas congeladas oferecem a pessoas constituídas em autoridade, que tomam todas as cautelas, ao manejá-las, prudentemente, a seu próprio respeito e rudemente a respeito dos outros; quer ainda pelas facilidades que proporcionam como instrumentos de proibição e de ameaça, mais ou menos oculta e de intimidação [...] o primado passa assim para a segurança humana com a necessidade de se garantir a si mesmo, psicológica e socialmente, graças aos diversos sistemas de protecção chamados por este primado da segurança, e cujo principal é um entusiasmo vigilante para denunciar seja o que for que se arrisque a pertubar isto, tudo isso; e aqui temos o abuso de confiança, tomando Deus como testemunha e em nome da santa Verdade" (p. 195). Clarificante definição. Se a carapuça servir que a vistem!

2 comentários:

DO disse...

Uma verdaeira aula eu tomei aqui

parabens

Abraços!!

http://www.ramsessecxxi.blogger.com.br/

R. B. Canônico disse...

Muito interessante as ponderações de Maritain.

Interessante que as agitações Modernistas não começaram logo após o Concílio... senão sewria a sublevação mais ligeira da História! =)

Todas as idéias tortas dos modernistas já estavam bem desenvolvidas, e o Concilio foi só um pretexto para dar força a elas.

A tática diabólica, porém, funcionou.