A reforma de Bento XVI entre inovação e tradição

Recensão publicado na Revista Brasileira de História das Religiões.


BUX, Nicola. La riforma di Benedetto XVI: la liturgia tra innovazione e tradizione. Casale Monferrato: Piemme, 2008.


A liturgia foi um dos grandes temas que mobilizaram os católicos no século XX. O desenvolvimento do movimento litúrgico na Bélgica, França e inclusive no Brasil, acenderam animosidades entre aqueles que visavam uma liturgia mais viva e aqueles que defendiam a permanência daquela estabelecida por Pio V, na esteira do Concílio de Trento. Podemos dizer que o Concílio Vaticano II foi um dos momentos mais importantes do século XX sobre a questão litúrgica, já que com a sua constituição Sacrossantum Concilium lançava novo olhar sobre ela. As lutas interpretativas em torno desse documento, e não só dele, mas de todos os textos conciliares, levou ao que alguns denominam de “abusos” na prática litúrgica, apontando assim para um olhar negativo em relação a todo o concílio, o que levou aos sérios afastamentos, até ao cisma de Marcel Lefebvre e seus seguidores em 1988. Para o arcebispo a missa tridentina era a “missa de sempre” e assim deveria continuar. A fim de aproximar-se destes grupos no seio da catolicidade, J. Ratzinger, que acompanhou a criação da Comissão Ecclesia Dei, especialmente constituída para dialogar com os grupos tradicionalistas, publicou em 2007 o moto proprio de Bento XVI Summorum Pontificum, possibilitando, desde então, que a missa tridentina pudesse ser realizada sem a prévia permissão do bispo, como era anteriormente acordado. Mais uma vez não faltaram reações exaltadas. Enquanto uns comemoravam o documento, pela renovada possibilidade de terem a missa tridentina sem precisarem seguir burocracia que não raramente não resultava como o esperado, outros, partidários do conclamado “espírito do concílio”, viam no documento de Bento XVI mais um ato de traição ao concílio e sua carga de renovação. Para incendiar ainda mais a conjuntura, em mais um passo de aproximação, o papa levantou as excomunhões dos bispos lefevbvristas em janeiro passado. Uma defesa do documento e da atitude de Ratzinger pode ser lida no livro do consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, Nicola Bux, La riforma di Benedetto XVI: la liturgia tra innovazione e tradizione. Prefaciado pelo célebre jornalista Vittorio Messori, Bux trata dos significados da liturgia e as batalhas travadas em torno dela.

Nos capítulos 1 e 2 – La sacra e divina liturgia e A chi ci avviciniamo con il culto divino – Bux dá sua compreensão do que significa a liturgia, quais seus papéis, sua relação com a sacralidade. Para ele deve-se retomar a idéia de que existe uma continuidade entre a Igreja que nasce do Vaticano II e aquela que existe antes dele. Deve-se olhar para o passado, recebê-lo e renová-lo. Isso seria a verdadeira reforma. Assim, afirma que “senza critica orgogliosa e presunzione aspra, non scaricando il passato ma sopportandolo in continuità e cosi rinnovandolo”.

No capítulo 3 – La Battaglia sulla riforma liturgica – o autor entra no cerne da discussão ao tratar dos conflitos em torno da questão e os significados das posições de Bento XVI sobre o tema. Citando Ratzinger e o moto proprio Summorum Pontificum, Bux afirma que a sua promulgação visa à reconciliação com os lefevristas e a superar a ruptura operada no processo de reforma litúrgica, que contrapunha o novo rito ao antigo. A fim de defender o a perspectiva de que na liturgia existe crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura, o autor traz palavras de Bento XVI e despende algumas páginas analisando a encíclica de Pio XII Mediator Dei, o documento sobre liturgia mais importante antes do Vaticano II. No documento pode-se perceber, segundo Bux, que “la tradizione è necessária e l’innovazione ineluttabile, ed entrambe sono nella natura del corpo ecclesiale come del corpo umano”. O autor trata das contendas nascidas da promulgação do Novus Ordo Missae por Paulo VI em 1969, da chamada “intervenção Ottaviani” e de algumas atitudes que considera desvirtuamentos do projeto original da Sacrossantum concilium e do papa Montini.

No quarto capítulo – La tregua del papa – Bux trata do moto proprio Summorum Pontificum e traz um pouco da história dos missais. Segundo ele, o documento teve três escopos centrais: favorecer a reconciliação interna da Igreja; oferecer a todos a possibilidade de participar da “forma extraordinária”, garantir o direito ao povo de Deus ao uso da “forma extraordinária”. O documento viria a corrigir a idéia, tanto de progressistas quanto de tradicionalistas, de que o missal romano, publicado pela última vez em 1962, e o missal de Paulo VI estavam em contraposição. Bento XVI afirmava que eram “due stesure” do desenvolvimento de um mesmo rito. Desta forma, o papa reafirmava sua, podemos dizer, hermenêutica da continuidade, tema tratado pele primeirva vez por ele em um discurso aos cardeais no Natal de 2005. Assim afirma no documento: “Non c’è nessuna contraddizione tra l’una e l’altra edizione del messale romano. Nella storia della liturgia c’è crescita e progresso, ma nessuna rottura. Cio che per le generazioni anteriori era sacro, anche per noi resta sacro e grande e non può essere improvvisamente del tutto proibito o, addirittura, giudicadom dannoso. Ci fa bene a tutti conservare le ricchezze che sono cresciute nella fede e nella preghiera della Chiesa, e di dar loro il giusto posto”. Para Bux, a atitude do papa vem no sentido de se achar o equilíbrio: primeiro, inserir novamente na unidade os tradicionalistas, especialmente os seguidores de Lefebvre e, segundo, demonstrar aos “inovadores” que a liturgia não é propriedade privada e que não deve ser manipulada ao livre gosto. Segundo o autor, logo após a promulgação do moto proprio surgiram algumas interpretações equivocadas, como aquelas que afirmam que a atitude do papa se deu apenas para aproximar os tradicionalistas. Para Bux, ao contrário, o documento visava demonstrar que a antiga liturgia jamais tinha sido abolida e que “l’aggiornamento di papa Giovanni del messale del 1962 non può essere contrapposto a quello di Paolo VI avvenuto otto anni dopo, ma tenuto insieme come una ricchezza: appartiene alla regula fidei come espressione straordinaria e non eccezionale, accanto a quella ordinaria e normale”.

No capítulo 5 – La crisi ecclesiale e il crollo della liturgia – Bux trata de alguns aspectos crise pós-conciliar no campo litúrgico. O estudioso faz uma defesa ampla do moto proprio Summorum Pontificum. Para o teólogo, a crise que se abateu sobre a liturgia foi devido o fato de que no centro da ação litúrgica, frequentemente, não está mais Deus e a adoração a Ele, mas os homens e a comunidade. A crise começa quando a liturgia deixa de ser vivida como adoração em Jesus Cristo na Trindade e como celebração de toda a Igreja e se aprofunda quando se extravia o espírito da liturgia, reduzindo-a a uma autocelebração de uma comunidade particular. Para corroborar sua afirmação, Bux cita palavras retiradas das memórias pessoas de Joseph Ratzinger: “Sono convinto che la crise ecclesiale in cui oggi ci troviamo dipende in gran parte dal crollo della liturgia”. A tese central do capítulo é que o moto proprio de Bento XVI significa mais um ato de Bento XVI em prol da hermenêutica da continuidade do Vaticano II. Se por um lado os tradicionalistas afirmam que a Igreja pré-conciliar foi traída pelo concílio, os progressistas defendem que a Igreja pós-conciliar traiu o concílio. Ambos os grupos partem, assim, de uma interpretação descontínua do Vaticano II. Bux nos diz: “L’unico modo di capire il moto proprio è quindi di inquadarlo come ulteriore sviluppo in continuità com tutta la tradizione della Chiesa [...] nel senso della continuità della comunione cattolica anche in âmbito litúrgico, tra tradizione e innovazione”. Dessa forma, o missal de Paulo VI (1969) constitui uma renovatio do missal promulgado por Pio V em 1570.

No sexto capítulo – Come incontrare il mistero – Bux inicia com uma persuasiva afirmação: perdeu-se o senso da liturgia porque foi perdido o senso da presença de Deus entre nós. O autor deseja trazer elementos específicos para uma vivência litúrgica que respeite seus elementos mais profundos. Despende algumas páginas sobre o “serviço sacerdotal” onde afirma que “la santa messa è come un’opera musicale scritta da un autore: va eseguita com fedeltà e non interpretata”. Em outra seção fala da participação dos fiéis. Segundo ao autor, o culto católico passou da adoração de Deus ao exibicionismo do padre, dos ministros e dos fiéis, com a piedade sendo abolida e liquidada pelos liturgistas como devocionismo, negando formas espontâneas de devoção de piedade.

O último capítulo – Un nuovo movimento litúrgico – passa a ser um clamor por uma nova forma de pensar a liturgia, não mais como uma ruptura, mas sim como algo orgânico e que respeite o passado. Para Bux, a renovação conciliar da liturgia tem ainda riquezas não exploradas, que necessitam ser colocadas em andamento, além de correções e integrações. O autor chega a sugerir algumas formas de reverter a “confusão” que se instalou na liturgia: a instituição de “visitas apostólicas” para a liturgia, já que devido à crise de obediência os documentos da Congregação para o Culto Divino ficam sem a devida acolhida; que os reitores e diretores das faculdades teológicas estejam conscientes das “deformações” e do “modo reto de celebrar”; promover encontro de sacerdotes e seminaristas dos movimentos eclesiais que são atentos à disciplina da Igreja; estudar o magistério eclesiológico e litúrgico de Pio XII (encíclicas Mystici Corporis e Mediator Dei) e a tradição litúrgica do Oriente. Bux tem como documento-chave de suas considerações a Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis.

A visão de liturgia e de Igreja que é trazida por Nicola Bux nessa obra é aquela orgânica, ligada estritamente ao âmbito eclesial e que reporta inúmeras vezes ao próprio pensamento de Bento XVI. O que podemos entrever em suas linhas é uma defesa da conduta seguida por Ratzinger na sua aproximação com os grupos tradicionalistas, principalmente com os padres da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), e uma estratégia bem pensada, contudo não tão bem executada (vide a “questão Richard Willianson”): a de pôr mais uma pedra sobre a hermenêutica da ruptura (base das gramáticas tradicionalistas e progressistas), a principal responsável, segundo o pontífice, da chamada “crise pós-conciliar”. A partir da liturgia, Bento XVI coloca mais uma pedra, senão a mais pesada delas.

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