"Esse obscuro objeto de desejo": o Vaticano II

Passei de novo os olhos no post passado e vi que em vez de falar de uma "supervalorização" do Vaticano II, como afirma Kurt Flasch, diria que é sim uma hipervalorização ... Emile Poulat, em seu une Église ébranlée: changement, conflit et continuité de Pie XII á Jean-Paul II, de 1980 trazia sua lúcida tese. No terceiro ponto do capítulo XIV, L'année des trois papes (1978), Poulat fala em "fin d'une tradition, persistance d'un modèle". Cita Congar lá pelas tantas: "Les termes du sicut acies ordinata (une armée disciplinée et organisée pour le combat) ou de societas perfecta *(société complète jouissant de tous les moyens de sa vie propre) sont ici parfaitement en place". Poulat confirma a tese do dominicano. Contrariamente do que se crê alguns tantos, diz o historiador, o Vaticano II não colocou em causa nem modificou substancialmente aquele modelo. Ele antes procedeu a reequilíbrios , confimando aquisições, podando galhos mortos...("Il a plutôt procédé à des rééquilibrages, entérinant des acquisitions, élaguant son bois mort [...]"). Já devo ter falado isso milhares de vez, mais aí vai, mais uma vez: a questão sobre continuidade e descontinuidade da Igreja com o Vaticano II pode também ser discutida apenas a partir do olhar histórico, sem necessidade de recorrer a elementos teológicos, que claro, enriquecem o esquema, mas possibilita também ser colocado em xeque exatamente por isso por aqueles que o hipervalorizam. Teologicamente deveria recorrer à comunidade primitiva, a primazia de Pedro, a tradição apostólica. Discutindo historicamente, como o faz Poulat, nota-se que as "aquisições" e "podas" que nos diz referem-se a toda história anterior ao evento conciliar que, por isso mesmo, possibilitou a sua realização. A hipervalorização, seja de esquerda ou de direita, decorre de um mito, aquele no qual, a partir de uma leitura fictícia e onírica dos eventos, "desejava" que fosse assim assado. Esse "obscuro objeto de desejo", para lembrar Buñuel e dar uma arejada ao texto, mistura as dimensões e já não se sabe mais o que é o evento, o que é a história do evento, o que o levou, o que veio dele e assim por diante. Falar do concílio é exercício de julgamento e de desejo. E aí parece que as duas ações têm uma relação promíscua. Tanto o desejar quanto o julgar mesclam-se com a idéia do "que foi". Inacessível pela sua natureza temporal. O que temos é a história efeitual como nos falaria Hans-Georg Gadamer. Analisando historicamente, a questão que emerge são os efeitos e não o evento. Nossa leitura do evento condiciona-se sim aos próprios efeitos que emanam como ondas por estes 50 anos. Sofremos os efeitos dos olhares, das compreensões, das interpretações, dos preconceitos que se acumularam por todos esses anos. E é também a partir dessa "massa efeitual" que se constrói mais elementos para compô-la. A hipervalorização é um de seus efeitos. Nem mais, nem menos.


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*Não concordo em parte com a afirmativa. Não vejo o societas perfecta imperando assim como quer dizer. A eclesiologia do Vaticano II, uma das maiores preocupações de Paulo VI, tentou um reequilíbrio entre a eclesiologia tridentina e do Vaticano I, marcada pelo dogma da infalibilidade, e aquela assinalada pela colegialidade (notem bem que aqui também há uma questão. O papa, na dita "semana negra" para o episcopado holandês, interviu nos trabalhos e "deu" a receita, a Nota Praevia, de como o texto deveria ser compreendido.

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