O dissenso na Igreja e a colegialidade

Marco Politi escreve sobre o papado de Bento XVI no The Tablet. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

"Crises anteriores no pontificado de Bento XVI envolveram as relações entre a Igreja e as outras fés. Mas a crise precipitada pela revogação da excomunhão de quatro lefebvrianos fez com que os bispos católicos expressassem seu desejo de um tipo diferente de relação com o Vaticano.A despeito de uma carta aos bispos de todo o mundo que provocou imediatamente profissões de solidariedade, o Papa Bento XVI, me parece, é como um monarca solitário que está perdido na Cúria.A tempestade causada pela remissão das excomunhões contra os quatro bispos lefebvrianos pode parecer que tenha se acalmado, mas a crise que explodiu após a sequência de erros que o Papa Bento buscou explicar ainda não. Ele se tornou um pontificado de duas metades: antes da ruptura e depois dela. O período depois explicitou questões que se referem à liderança de Joseph Ratzinger, revelando, ao mesmo tempo, a tensão entre o governo central da Igreja e bispos importantes do hemisfério Norte.Lendo as entrelinhas da mensagem de solidariedade dos bispos ao Papa, existem pedidos para que ele mude o seu estilo de governo. A hierarquia alemã se professa encantada pelo Papa querer entrar "em diálogo com os bispos" (assinalando que até então isso não acontecera). Os bispos franceses destacam a necessidade do Vaticano de se tornar acostumado a um intercâmbio que é "rico e substancial", indicando que a relação entre o Papa e os bispos não deveria consistir simplesmente em ordens que vem de cima. Na Suíça, o bispo de Lugano, Pier Giacomo Grampa, expressou a esperança de que o estilo humilde e fraterno da carta de Bento XVI se torne o estilo adotado no governo cotidiano da Igreja.Mas foram os bispos austríacos que apresentaram a mensagem mais fortemente mordaz. A Igreja guiada por um de seus discípulos mais fiéis, o cardeal Christoph Schönborn, lembra ao Papa que ele não é a única pessoa que está sofrendo e que essa dor também foi sentida "por muitas igrejas locais e pelas pessoas de fora da Igreja".O problema central na Igreja hoje não é a existência de um partido anti-Ratzinger na Cúria. Pode haver cardeais que são mais ou menos entusiastas sobre a direção na qual o Papa está guiando a Igreja. Certamente, o secretário de Estado, cardeal Tarcisio Bertone, não é considerado parte do aparato curial ou "um deles". No entanto, em geral, os chefes das congregações são bem alinhados e seguem as instruções papais fielmente. Centros de oposição ou dissenso não existem. O problema real parece ser a ausência de uma liderança inspirada por uma estratégia coerente que possa dar conta da cena geopolítica e da opinião pública dentro e fora da Igreja.Fez sentido revogar as excomunhões dos quatro bispos lefebvrianos – sem obter qualquer declaração de adesão fiel ao Concílio Vaticano II – no mesmo dia que marcava o 50º aniversário da decisão do Papa João XXIII de convocar o Concílio? Fez sentido insistir no perdão ao bispo negacionista Richard Williamson na mesma semana dedicada à memória da Shoah?MaAqui há um detalhe importante que deveria ser lembrado. O decreto do Vaticano de revogar as excomunhões foi publicado 48 horas depois que a história fosse divulgada pela primeira vez na imprensa. Imediatamente depois disso, a entrevista com o bispo Williamson para a televisão sueca foi publicada, na qual ele insistia que seis milhões de judeus não haviam morrido no Holocausto. Houve dois dias para que Bento XVI e seus assistentes tivessem uma ampla oportunidade de bloquear a publicação do decreto e evitar a necessidade de avisos, explicações e solicitações à Fraternidade de São Pio X, que surgiram do secretário de Estado só depois que a catástrofe havia acontecido. A generosidade com a qual o Papa, em sua carta, evitou culpar qualquer um de seus colaboradores – em primeiro lugar, o cardeal Castrillón Hoyos, presidente da Comissão Ecclesia Dei, encarregada de negociar com os lefebvrianos – não nega um fato: mesmo que ele tenha sido avisado pela imprensa mundial sobre a crise iminente, o Papa não considerou oportuno pedir um tempo e rever a decisão.Eu imediatamente pensei nos dias que se seguiram ao 12 de setembro de 2006, em Regensburgo. Muitas horas antes que Bento XVI apresentasse a sua conferência na universidade, citando as palavras anti-Islã de um longínquo imperador bizantino, um grupo de jornalistas (que receberam uma cópia do texto sob embargo às 7h daquele dia) já haviam avisado o porta-voz do Vaticano, Pe. Federico Lombardi, que a declaração poderia causar problemas com os muçulmanos. Os jornalistas eram dos jornais La Repubblica, New York Times, Los Angeles Times e da Associated Press, assim como do canal de televisão italiano Channel 5. Ninguém pode duvidar que o Pe. Lombardi informou os seus superiores. Acima de tudo, sabe-se muito bem no Vaticano que o cardeal Angelo Sodano avisou o Papa do risco que ele estava assumindo com essa conferência. Mesmo assim, Bento XVI seguiu em frente, com a consequência de que ele teve que expressar muitas vezes o seu arrependimento aos representantes do Islã. O séquito do Papa tem uma máxima: "Não perturbe o motorista". Mas essa não é a forma de se guiar uma comunidade de 1,2 bilhão de fiéis. A carta do Papa Bento expressa uma grande sinceridade pessoal, mas também revela uma fraqueza. Falar de hostilidade dirigida contra o Papa, especialmente dentro dos círculos católicos, levanta algumas sérias questões. Isso sugere que ou Papa considera toda crítica como um ataque pessoal – e essa não deveria ser a reação de um líder que precisa compreender a complexidade envolvida no processo de governança – ou que existem muitas pessoas na Igreja que estão preocupadas com a direção que está sendo tomada pelo Papa.Essa é a primeira crise real da liderança do Papa. Nos últimos anos, as crises foram sempre fora da Igreja: relações com o Islã, relação com a comunidade judaica impacientes com relação às medidas para beatificar Pio XII. Mas desta vez a crise explodiu "dentro" da Igreja, e o fato que surge claramente é que os bispos denunciaram uma ausência de colegialidade no governo do Papa Bento.O Papa estava totalmente ciente de que a maioria dos membros do Colégio Cardinalício que se encontrou em Roma, em março de 2006, era da visão de que os seguidores da Fraternidade de São Pio X só poderiam retornar ao seio da Igreja se expressassem uma "adesão fiel ao Vaticano II". Mas ele preferiu não levar isso em consideração. Ao tomar a decisão de cancelar as excomunhões, ele não consultou nem os chefes dos dicastérios da Cúria, nem os bispos com um interesse particular. Ele não considerou isso importante nem necessário.Quando eu o entrevistei em novembro de 2004, apenas alguns meses antes do conclave em que foi eleito Papa, o então cardeal Ratzinger disse: "É crescentemente aparente que uma Igreja mundial, particularmente nesta situação presente, não pode ser governada por um monarca absoluto [...], em tempos em que um sentido deve ser encontrado para criar, de forma realista, uma profunda colaboração entre os bispos e o Papa, porque apenas dessa forma seremos capazes de responder aos desafios deste mundo".Bento XVI não fez nada para concretizar esse princípio. O caso referente aos lefebvrianos – como a decisão unilateral, em 2007, de restabelecer de forma permanente a missa pré-conciliar – trouxe à luz o coração da crise: o fracasso de implementar a colegialidade. O Papa João Paulo II também preferiu um exercício de poder que foi fortemente pessoal, mas, por trás de seu carisma, ele manteve um ouvido próximo da opinião pública mundial, teve um profundo sentido de história e a habilidade de realizar gestos que abriram novas perspectivas para a Igreja católica e para todo o cristianismo. Houve, por exemplo, o seu gesto de penitência pelos erros e pelos horrores cometidos pela Igreja ao longo dos séculos, a oração conjunta com os líderes de outras religiões mundiais, a celebração de laços únicos entre as fés abraâmicas – Judaísmo, Cristianismo, Islã – e a proposta final de uma consulta com os chefes das Igrejas cristãs para rever juntos o exercício do primado papal.Hoje, sem esses saltos para frente, o que fica é o problema nu de um exercício de poder que é autoritário e solitário, frente ao qual os bispos de todo o mundo estão aumentando suas demandas por colegialidade. O caso que se refere à nomeação do Pe. Gerhard Maria Wagner como bispo auxiliar de Linz se torna emblemático a esse respeito. Nunca havia acontecido que uma conferência nacional dos bispos se opusesse a uma nomeação papal e obrigasse o Papa a revogar a decisão. Porém, isso aconteceu na Áustria. E é um sinal de uma tensão subjacente que poderia facilmente pegar fogo. Da mesma forma, nunca havia acontecido que um arcebispo proclamasse uma excomunhão, validada posteriormente pelo Vaticano, e que os bispos de outro país protestassem contra a decisão ao ponto de que o jornal do Vaticano, L'Osservatore Romano, tivesse que criticar a excomunhão. Isso aconteceu com a excomunhão pronunciada no Brasil pelo arcebispo José Cardoso Sobrinho contra a mãe de uma menina de nove anos que permitiu que a sua filha tivesse um aborto depois que a menina havia sido estuprada e engravidasse. A reação violenta de um grande número de bispos na França contra a excomunhão criou uma dificuldade para o Vaticano.Verdadeiramente, sob a superfície do poder romano – assim como debaixo de um vulcão – pode-se ouvir estrondos abomináveis."

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